Se todo mundo pensasse seriamente no absurdo que é tudo isso de ser feito de carne, mas também olhar as estrelas, de ter um rosto, mas também ter aquele buraco fétido, se todo mundo tivesse o hábito de pensar, haveria mais piedade, mais solidariedade, mais compaixão e amor. Hilda Hilst
25 setembro, 2009
indivíduo
Caminhou vagarosamente embaraçado. Pela aparência poderiam até dizer que estava embriagado. Andava tonto, pendendo para os lados. Muitos olhos o olhavam de soslaio, com desdém. Quem seria este Zé Ninguém? Zé Ninguém tem nome próprio, teve família, teve história, mas nada disso interessaria a alguém. Poucos passos trôpegos entre os passantes e seus viços nas faces, fartura de carnes, Zé Ninguém parecia perdido entre verduras brilhantes. Pensava num pequeno milagre de ser invisível por alguns instantes. Indigente e invisível, o de costume, mas ali, naquele lugar, chamava atenção, uma atenção nojosa, enjoativa. Virou motivo de queixume. O homem-pêndulo carregando desespero por entre os rótulos gritantes das prateleiras. Antes que suas mãos carregassem qualquer força furtiva, caiu por entre os carrinhos. Chamaram a segurança, a guarda civil, a polícia militar. Burburinhos surgiram por todo o espaço. A gerência mandou remover logo, atrapalha as vendas. Um indíviduo solitário, julgado por sua falta de alma, falta de amor, falta de nome. Zé Ninguém era sim alguém... era apenas um homem com fome.
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Um comentário:
Esse texto me emocionou. Me lembrou Manuel Bandeira. Vou me atrever a ocupar espaço aqui com o texto dele. Lá vai:
O BICHO
“Vi ontem um bicho
na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.”
- Manuel Bandeira
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