19 fevereiro, 2009

momento

Ainda não era momento de ouvir sua voz de novo.
Mas não tive a sorte de estar longe da sala quando tocou o telefone.
Não era momento de dizer "tudo bem" quando, na verdade, está tudo uma merda.
Não, eu não estou bem.
Tou achando tudo um saco, pra dizer a verdade.
Minha vontade de ir embora não é só pra fugir da cidade.
É pra fugir de tudo.
Fugir de tudo em que me apeguei por aqui.
Isso inclui você.
Não é só você.
Mas inclui você.
Tudo bem que eu posso fugir por aqui mesmo.
O problema é que onde eu vivo
e com quem eu convivo
não é uma zona neutra.
Não é um lugar onde não haja resquício de lembrança sua.
Isso vai desde o trajeto de casa até o trabalho,
e outros lugares mais.
Os ônibus que vão pra sua casa.
E tem pessoas.
E as relações todas minhas e das pessoas
e, mesmo que eu não pergunte,
e realmente eu não pergunto,
de alguma forma, vou saber sobre você.
O mínimo do mínimo, mas vou saber.
De toda forma, parece maldição
ou praga que alguém rogou em mim:
por mais que eu fuja para um lugar distante
você ainda está em mim.
Eu sonho contigo todos os dias
e os sonhos sempre são bons.
Aí eu acordo
e vejo uma realidade muito diferente.
Não, não está tudo bom.
Aí, me sinto com uma coisa
que uma vez alguém chamou de lepra espiritual.
Cada dia cai um pedaço da alma.
Eu queria falar com você
mas não neste momento.
Porque, nesse momento, eu ainda estou morrendo aos poucos
e quando acho que não estou mais morrendo
a vida me dá um sinal: está sim.
Desliguei o telefone e corri para o banheiro chorar.
E senti de novo uma dor profunda no peito,
na garganta,
no estômago.
Me senti ridícula,
idiota,
fraca,
impotente,
incapaz de não sentir dor nenhuma.
Não, não era momento de falar com você.
Mas eu não pude evitar
e se assim aconteceu
talvez seja a vida me dando um outro sinal: era sim.
Era momento de eu entender que
lhe dizendo que tá tudo bem
ou tá tudo uma merda,
não faz a menor diferença.
Você não vai se importar.

04 fevereiro, 2009

resquícios

Achar felicidade nas quinas, esquinas, cantos e rodapés, rodopiando dentro do quarto ao som de samba, na cadência iluminada pela luz quente, amarela, dentro do lustre que carrega mosquitos mortos. Encontrar alegria nos livros já lidos e nos que ainda não foram explorados, sentir cheiro de papel envelhecido, amassado, dos bilhetes de outrora. Abrir a janela e não ver a aurora, nem crepúsculo, apenas olhar pra cima e ver o céu lá fora. A tontura dos rodopios embaça a vista que tenta ler os encartes dos vinis esparramados pelo quarto, uma vez que se quebrou a agulha da vitrola. Um violão, um pandeiro, uma gaita, um caxixi e um chocalho, adormecidos no armário esperando a próxima oportunidade para serem acordados. Um quarto que carrega um inteiro de memória e amor que nunca foi quarto nem metade. Amor único e inteiro, espalhado numa cama de solteiro. Amor e dois travesseiros. Um deles, hoje, chora o vazio da solidão.

03 fevereiro, 2009

Dores do mundo

por Xico Sá

Uma das grandes vantagens das mulheres sobre nós é a coragem, o destemor, de chorar em público. Se o choro vem, as mulheres não congelam as lágrimas, como os moços,pobres moços... Não guardam as lágrimas para depois, como sempre adiamos, não levam as lágrimas para chorar escondidos em casa.

Pior ainda é o homem que não chora nunca. Além de fazer mal ao coração, esse tipo não merece muita confiança. As mulheres não, falo da maioria das moças, desabam em qualquer canto e hora. Se estão mal de amor, choram na firma, no escritório mesmo, na fábrica, choram no trânsito, choram no metrô, simplesmente choram.

Como invejo as lágrimas sinceras das fêmeas.

Quantas vezes a gente não se preserva, por fraqueza, enquanto as lágrimas, em cachoeira, batem forte no peito machista e viram apenas pedras do gelo do uísque.

Como invejo as mulheres que misturam sim o trabalho com o drama heavy metal da existência. Desconfio da frieza profissional, das icebergs de tailleur, que imitam os piores homens e guardam tudo para molhar o travesseiro solitário numa noite de inverno.

Ora, as mulheres podem ser infinitamente poderosas, administrarem plataformas de petróleo nos mares... e chorarem um atlântico diante de uma alma perra e sem cuidados.

Lindas e comoventes as mulheres que choram em público, nas ruas, nos bares, nos restaurantes, nas malocas, no táxi. São antes de tudo umas fortes. Tristes dos que estranham ou ficam envergonhados com o mais verdadeiro dos choros. O medinho do macho diante do pênalti que vale uma vaga no torneio da dignidade.