26 dezembro, 2010

nem

Ando brejeira e leve...
suspensa.
Insuspeitando do que disse a noite,
outrora,
que devastei o mundo com estrelas.

Se soubesse ela, a noite,
o quão frio faz nestas horas,
teria desejado, onde e quando,
me fiz breve e trágica
como a fúria de uma ventania.

Nem tudo é natural.
Nem tudo é universal.

Nem eu, nem a noite,
nem as estrelas.
Nem a tez ruborizada
pelas mãos entrelaçadas,
rasgadas pela trilha
de um suspiro ao fundo.

Nem um segundo.
Nem nada.

08 outubro, 2010

sendo

Compilando o que sou e fui, sigo sendo. Abrindo o armário único do quarto reencontrado, olho um espelho. Empurrei com o velho gesto a mesma porta. Sobra um trinco em minhas mãos. O velho gesto se dilui na minha função de habitar, desgastada neste corpo que não esquece. Este corpo feito de variações sobre um mesmo tema fundamental.

14 setembro, 2010

dama de vermelho

Duas e tantas da tarde, metrô cheio, muito calor. Eu de vestido vermelho acima dos joelhos e sandalinha. Desci na plataforma da estação Ana Rosa. Comecei a subir as escadas. O trem lá embaixo arrancou. A ventania subiu. Não deu tempo nem de pensar. Só consegui ouvir os urros de um grupelho adolescente. Olhei pra trás. Uma senhora fazia o sinal da cruz.

19 agosto, 2010

enigmático

Você me escreve um poema toda vez que me diz,
que me toca, que me beija,
que me olha e que me deseja,
porque me comove e me sensibiliza...
poesia esta que carrega o mistério das frases não ditas,
dos idiomas ainda não inventados...
Me sinto assim, mulher que se resignifica fêmea,
quando você faz estes poemas pra mim...
e te permito me olhar nos olhos
para que, inteira, possa dizer-te,
acessível aos meus enigmas
de mulher-esfinge:

Decifra-me ou devoro-te!

E o que sobra,
felizmente,
são as duas opções...

25 março, 2010

a hora

E quando tudo tiver sua hora de chegar
eu já terei ido longe.
Percorrido uma distância urgente, ofegante,
no cansaço em que se divide um dia civil.

Eu, não menos civilizada,
aguardo o tempo ordinário em que não fiz
o que deveria ter feito ou poderia fazer:
traço a minha ocasião.

Não determino nada, mas corro contra o tempo,
esse devorador da vida que vaga, lentamente ágil,
com a força de um furacão.

Não resisto às variações
do meu meridiano central.

As horas não serão mais horas,
partes, números, ensejos,
nem extraordinárias cargas de operários tristes,
intervalos críticos e decisivos,
momentos de desejo,
quando tudo tiver a hora de chegar
eu já terei partido, em boa hora:
se a badalada no sino do relógio, grita,
inquieta, em alta noite,
quando tudo está em silêncio.

Persevero, paciente,
pois não tenho prazo para acontecer.

16 março, 2010

inferno

Ainda prefiro acreditar que inferno é somente o poço onde cai a água depois de mover a roda do moinho.

09 fevereiro, 2010

simples

O amor puro, leve e sucinto, assim te sinto, como a simplicidade em que os pássaros descrevem em linhas súbitas no ar, o equador. Como o passo descompassado de uma música essencial à mente e ao coração. O passar de horas onde todo tempo é tempo, onde o corpo é ode descontínua, onde a vida lúcida e reluzente deságua em desejo e poesia.

08 janeiro, 2010

o gato

Depois de tantos desvarios na madrugada
trocando miúdos até amanhecer
esperamo-nos inteiros, intensos animais.

Chegaste devagar,
quase sorrateiro,
agora te percebo de andar sereno e leve
o felídeo vezes desconfiado.

Selvagem quando decide,
arredio quando necessita,
à mínima luz o brilho da retina
do meu eixo, por vezes, me retira...

O gosto do afago, mas sem exagero:
se te aperto muito, foges de mim.

O belo gato se arisca e quer sossego.

Mas quando te decides por carinho
e se enrosca tranquilo nas minhas pernas
de pêlos macios, pele quente,
sou fêmea, bicho-mulher, inteira
desfrutada com gosto e devagar.

E ronrona no meu ouvido, o belo gato...

O mundo selvagem torna-se paraíso
do amor felliniano felino, o amor humano dos bichos.

estética da tragédia

Por que as pessoas se interessam tanto por mortes, desastres, desgraças? Será para alimentar mais o medo? Será para questionar algum vazio de existência (já que, para morrer, basta estar vivo)? Será pura e simples morbidez? Sadismo? A morte serve ao capitalismo: vende jornais, revistas, anúncios na televisão. A morte amortecendo as gentes.


(há beleza na morte ou morte na beleza?)

04 janeiro, 2010

festejo

Com ar de festa desejo os sentimentos urgentes e seus momentos de pequeno alcance; a divindade das horas que despertam imagens apagadas; as considerações sobre a vida que ultrapassam palavras; as imprevisíveis liberdades conquistadas, irreparáveis e inconstantes; as simplicidades de uma consciência cintilante. Nosso devir de expressão, a nossa poética isolada contaminando a multidão.