28 outubro, 2008

correspondência

"Querida,
sei que nesse momento precisa, por isso escrevo essa carta. Não sinta medo, nem culpa, nem raiva. Sei que adoeces de culpas que não deveria ter. Devo lhe dizer que já te vi adoecer inúmeras vezes simplesmente por ser ingênua. Não boba, ingênua. Já te vi sentir a fome dos outros com tua barriga. Minha querida, não faça mais isso com você. O excesso de altruísmo lhe faz mal. Por que se desacreditou? Vi você se largar e se desprezar por medo. Que buraco foi esse onde se enfiou? Para onde isso te levou? Repito, não sinta culpa. Se conhecer às vezes é difícil e doloroso. Quando você se ouviu pela última vez? Sei que faz tempo. Mas também sei que há aí dentro uma voz que ecoa com força o tempo todo. Essa voz implora por ser ouvida. Você só tem dois braços que não são suficientes para um mundo deste tamanho. Mas os seus ouvidos são suficientes para você. É simples. Não estou lhe impondo verdades. Apenas te sugiro um caminho. Você pode escolher. E pode não escolher. Apesar que não escolher também é uma escolha. A voz está gritando. Vai se fazer de surda? Boa sorte, minha querida. Você é mesmo muito querida."


Postou a carta na agência de correios. O destino? Seu antigo endereço. Pegou um táxi rumo ao aeroporto. O destino? Algum lugar.

a menina que queria comer nuvens

Eu gosto de brincar sozinha no meu quarto. Às vezes a dinda entra aqui, pergunta se vou almoçar. Eu não sinto muita fome. Eu nunca sinto fome. Eu cozinho pras minhas bonecas e elas sim, gostam de comer. Eu não gosto de comer, sabe. Não assim, de verdade verdadeira. Comida de mentirinha é mais gostosa. Comida de brincadeira. Minha mãe fica preocupada, ralha comigo toda hora. Mas, ah, eu não ligo pra isso. Eu não ralho com as minhas bonecas quando elas não querem comer a minha comidinha. Minha mãe não entende. Eu só quero comer nuvens. Elas são tão branquinhas e fofinhas! Cada hora é uma coisa. Nuvem de coelhinho. Nuvem de bolinho. Aí sim eu sinto fome. Eu vou lá pro quintal. Minha mãe ralha porque eu me sujo toda deitada na grama. Mas eu não ligo. Eu gosto do cheirinho da grama. E dos tatus-bola do jardim. Eu fico com fome das minhas nuvenzinhas lá do céu. O céu azulzinho, azulzinho, que nem o mar. Se bem que eu nunca vi o mar, assim, não de verdade. Só vi na fotografia. Mas eu não ligo. Eu tenho esse mar maior em cima de mim, e as minhas nuvens. É só delas que eu gosto. Minha mãe chora toda vez que eu digo que vou subir lá no céu pra comer as nuvens. Sei lá por quê. Ela fala que eu tenho que comer. Mas eu não sinto muita fome, ela sabe. Eu nunca sinto fome. Eu não gosto quando a mamãe chora, eu fico triste. Eu falo pra ela não chorar, porque o céu é bonito que nem o mar. Eu sei que a mamãe se preocupa comigo, mais ainda depois que eu não pude mais ir pra escola. Mas eu não ligo de não ir mais pra escola. Eu gosto do meu quarto. Eu gosto de deitar na grama do quintal. Eu gosto de todos os tatus-bola. Às vezes vem umas borboletas me visitar! Eu também gosto muito delas. Eu falo pra mamãe não chorar, eu falo pra ela vir deitar comigo pra ver o mar-céu. Eu queria que a mamãe também tivesse fome de comer nuvens, acho que aí ela ia ficar feliz. É sim, porque eu sempre fico feliz quando tenho vontade de comer as nuvens. Ah, mas ela só fica preocupada. E fica triste. Não sei por que mamãe anda tão triste. A gente não pode ficar triste assim, né, se a gente tem tatu-bola, e tem borboletas nos visitando! A gente tem as nuvenzinhas. Eu falo pra ela mas não adianta. Eu gosto do meu quarto. Eu peço pra mamãe abrir a janela. Eu não posso mais deitar na grama, mas eu não ligo. Eu posso ver o mar-céu da minha janela. As minhas nuvens! Elas estão me esperando. Eu vi lá fora as borboletas nos visitando. Eu gosto muito delas. Eu estou com fome de comer as nuvenzinhas. Acho que eu vou até elas. A mamãe tá chorando. Mas eu tou feliz, pois agora vou sentir o gosto delas.

27 outubro, 2008

sem título 2

não preciso de paredes
para te encontrar.
nem templos fechados
nem casas, nem prédios
arquitetura e belos vitrais.

te encontro em mim
olhando o luar.
te encontro nos olhos
daquele que me faz amar.

posso ver-te sem te olhar.
posso sentí-lo sem te tocar.


paisagem revelada.
deus.
além da minha matéria
de ser eu, e de ser nada.

monstro

o monstro tem olhos largos.
olhos mais sombrios
que a névoa sobre o pântano
em noite de eclipse lunar.
são olhos frios e gordos
que se projetam sobre luzes de felicidade
emanadas nas auras dos bem amados.

não há amor nesses olhos.
nem pupilas dilatadas pelo amanhecer.
olhos duros e vazios,
sem profundidade,
sem sonho e sem querência.
olhos que desejam mal e morte
e dor e sofrimento.

encontrei-me com mil monstros
muitas vezes, sem saber.

a desilusão com a raça humana passa
como filme de terror.

21 outubro, 2008

olhos para leminski

sem título

Definitivamente te encontrei.
Olhava estrelas e pastos,
sonhava em decifrar sonhos
e os mistérios de outrem.

Te encontrei.
Não tens forma e não te vejo.
É como o vento, como um sopro,
como o ar.
Movimento.
Energia e sinergia
sinestesia
e tudo isso que me anestesia.

Te encontrei.
Deus.
Te decifrei.

Não contem com isso

a.ban.do.no
sm (de abandonar) 1 Ação ou efeito de abandonar. 2 Desamparo, desprezo. 3 Desistência, renúncia. 4 Imobilidade, indolência, moleza. Antôn (acepções 1 e 2): amparo, proteção. A. de emprego, Dir trab: descumprimento continuado e definitivo, por parte do empregado, da obrigação de prestar serviço; fato de deixar a relação de emprego sem qualquer comunicação ao empregador. A. de serviço, Dir trab: descumprimento da obrigação de trabalhar. Pode configurar-se tanto na ausência continuada ao serviço como na acintosa inexecução de trabalho a que esteja obrigado o empregado. A. do lar, Dir: afastamento voluntário de um dos cônjuges, por dois anos, um dos motivos de desquite. Ao abandono: sem amparo, sem cuidados.



ABANDONAR-ME? NUNCA.
PREFIRO MORRER LUTANDO COMIGO MESMA!

09 outubro, 2008

S o b r a

O tempo passa, os ponteiros giram,
e eu nada deixo por aqui?
Envelhecendo nesse mundo louco e ficando louca.
Não deixando nada por aqui.
Não tenho nenhuma obra pra deixar.
Não componho
não escrevo
não pinto nem desenho.
Atuo e danço,
mas nisso meu corpo tem que estar vivo,
é efêmero,
passa logo, dali a pouco ninguém mais vai lembrar.
Nao caibo numa prateleira
nem posso me pendurar numa parede.
Não giro dentro do aparelho de som.
Eu nada deixo por aqui.
Não tenho nenhuma obra pra deixar no mundo.
Talvez não tenha sido criativa o suficiente.
Ou ousada o suficiente.
Não sei.
Cada dia sei que sei menos do que achava que sabia.
O mundo sujo tem me aborrecido, quando não emburrecido.
Tou cansada.
O que deixarei para os meus filhos?
Meu DNA e algum valor que não sei se tem valor.
Nem mais valia.
Posso olhar pra Deus? E ser cega?
Enxergar e não ver?
Não posso ter asas, ao invés de braços?
Onde vaga a liberdade que disseram que eu teria?
Por que meus sonhos moram longe,
e eu não sei que condução pegar?
Tou cansada.
Não tenho nenhuma obra pra deixar.
De mim, não sei nem se há algo pra sobrar.