30 janeiro, 2006

Esperança

Todo o meu esforço canalizo para a vida.
Não para o equilíbrio, não para as certezas. Caminho suportando nas costas todo o peso da desesperança, pois que a esperança, é ridículo, dramático, que a humanidade ainda precise de tê-la.
Esperança em quê? Em remédios que curem?... Em poemas que se dão de mão em mão?
E as cartas sem resposta?
E os becos sem saída?
E a nova hipocrisia?
E o deus-dinheiro que nos espreita a cada esquina?... e a África?
E a América Latina?...
E todas essas universidades e tantos analfabetos?...
Toda gente sabe a extensão da verdade: surpreendendo a paisagem esfomeada, o gatilho já não precisa do dedo de ninguém.

Cruzeiro Seixas

22 janeiro, 2006

Incompreensível para as massas

Entre o autor e o público, posta-se o intermediário.

E o gosto do intermediário
é bastante intermédio, medíocre.

Medianeiros médios pululam nos meios, onde, galopando, teu pensamento chega.
Um deles considera tudo sonolento:
"Sou homem de outra têmpera! Perdão",
e repete um só refrão:
"O público não compreenderá".

Camponês, só viu um faz tempo, antes da guerra.
Operários, deu com dois, uma vez, numa ponte, vendo subir a água da enchente.

Mas diz que os conhece como a palma da mão.
Que sabe tudo o que querem!
Aqui vai meu aparte: chega de chuchotar bobagens para os pobres. Também eles, podem compreender a arte. Logo, que se eleve a cultura do povo!
Uma só, para todos.

Wladimir Maiakovski

O Anarquista

O anarquista que há em mim se junta com o ingênuo que há em você e propõe: "vamos fazer uma república utópica?".

O princípio da realidade passa com a sirene aberta, pára e nos autua em flagrante.

Alex Polari

O desbarato mais absurdo...

O desbarato mais absurdo não é o dos bens de
consumo, mas o da humanidade: milhões e milhões de seres humanos nasceram para ser trucidados pela história, milhões e milhões de pessoas que não possuíam mais do que as suas simples vidas.

De pouco ela lhes iria servir, mas nunca faltou quem de tais miudezas se tivesse sabido aproveitar. A fraqueza alimenta a força, para que a força esmague a fraqueza.

José Saramago

21 janeiro, 2006

É preciso não esquecer nada

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.

(Cecília Meirelles)

19 janeiro, 2006

18 janeiro, 2006

estamos todos certos e somos todos errados

tem gente que diz que papai do céu faz as pessoas em fornadas e,
quando pessoas da mesma fornada se encontram,
elas se reconhecem.

tem gente que diz que pessoas de verdade
reconhecem quem é de mentira.

tem gente que diz que a pessoa certa
aparece sempre na hora certa e,
por isso,
ela é certa.

tem gente que acha que todas as pessoas são certas,
menos uma – ela própria.

tem gente que não acha nada,
mas procura que nem o diabo a vida toda.

a gente é cheio de regras e dogmas
que servem como uma desculpa
pra justificar as coisas injustificáveis que fazemos.

você já deve ter ouvido alguém dizer
que você é a pessoa certa na hora errada
e – geralmente – quem diz isso
são pessoas erradas na hora certa.

Essa busca pelo certo e pelo perfeito
é louvável até certo ponto.

Mas só até certo ponto,
porque não sei se você sabe o que acontece
com o artista que fica a vida toda retocando o mesmo quadro

Fernando Tucori


acesse: http://terremototorquemada.blogspot.com/

Eterno...

"Eterno é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha
intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata..."

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"DEFINITIVO, como tudo que é simples!! Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram."

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Por muito tempo achei que a ausência é falta.

E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.



Carlos Drummond de Andrade




17 janeiro, 2006

SONETO 172 ANTOLÓGICO

As frases memoráveis da República
deviam ter, na pedra ou voz gravada,
registro, qual legenda avacalhada
num filme de comédia ou cena lúbrica.

"Prometo que agirei na vida pública
da mesma forma que ajo na privada!";
ou: "Fi-lo porque qui-lo!", tão surrada;
ou: "Não me deixem só!", suprema súplica.

Também vou proferir, eu que não minto,
a pérola imortal de quem adora
mandatos, completado o quarto ou quinto:

"Da vida partidária saio agora.
Já fiz o que devia, e alívio sinto.
Caguei, limpei a bunda, e vou-me embora!"

Glauco Mattoso

Meu ódio-amor...

Meu ódio-amor:
Tudo se esvai.
A hora se faz móvel
Escorrida
Sobre o corpo da vida.
Vou-me.
Pedra lisa e mar
Fixa-informe
Tento te segurar
Tu que és minha vida.
Morre
O mesmismo de mim
Se não me colo a ti.
Vagueio.
Alguém me vê
E aponta:
Dentro da flor aberta
Uma abelha morta.

Hilda Hilst

13 janeiro, 2006

Sabor de Burrice

Veja que beleza
Em diversas cores
Veja que beleza
Em vários sabores
A burrice está na mesa
Ensinada nas escolas
Universidade e principalmente
Nas academias de louros e letras
Ela está presente
E já foi com muita honra
Doutorada honoris causa
Não tem preconceito ou ideologia
Anda na esquerda, anda na direita
Não tem hora, não escolhe causa
E nada rejeita

Veja que beleza
Em diversas cores
Veja que beleza
Em vários sabores
A burrice está na mesa

Refinada, poliglota
Ela é transmitida por jornais e rádios
Mas a consagração
Chegou com o advento da televisão
É amigo da beleza
Gente feia não tem direito
Conferindo rimas com fiel constância
Tu trazes em guarda
Toda concordância gramaticadora
Da língua portuguesa
Eterna defensora

Tom Zé

Procures me amar...

"Procures me amar quando menos mereço, pois é quando mais preciso."

Mário Quintana

O Analfabeto Político

O pior analfabeto
é o analfabeto político
Ele não ouve,
não fala,
nem participa dos acontecimentos políticos

Ele não sabe que o custo de vida,
o preço do feijão,
do peixe,
da farinha, do aluguel,
do sapato e do remédio
dependem das decisões políticas

O analfabeto político é tão burro
que se orgulha e estufa o peito, dizendo que odeia política

Não sabe o imbecil que,
da sua ignorância política,
nasce a corrupção,
o menor abandonado, o assaltante
e o pior de todos os bandidos:
que é o político vigarista,
pilantra, o corrupto
e o lacaio das empresas nacionais e multinacionais.

Bertolt Brecht

Balangandans

É justo para se lamentar, a gente abrir mão de segundos
preciosos
Que talvez nos trouxessem direto um pro outro?
É justo que um pote de ouro venha ao seu encontro (e ao meu)
E desencadeie pânico, paralisação, desastres, desculpas?
É justo te dar um beijo na boca à margem da testa, da fala
E da escrita, de uma represa, uma festa?
é justo permitir que uma palavra desgovernada deixe minha boca
E aumente minha resistência a você?
Se uma pessoa só é uma máquina só
Se ela (provavelmente)
Canta, dança, pensa, treme
Aflita
Não será que tem respostas nas pontas dos dedos
-Dados, balangandans no pensamento-
Que costumem nos acompanhar?

Maurício Pereira

Cultura Lira Paulistana

A ditadura pulou fora da política
E como a dita cuja é craca é crica
Foi grudar bem na cultura
Nova forma de censura
Pobre cultura como pode se segura
Mesmo assim mais um pouquinho
E seu nome será amargura ruptura sepultura
Também pudera coitada representada
Como se fosse piada
Deus meu por cada figura sem compostura
Onde era ataulfo tropicália
Monsueto dona ivone lara campo em flor
Ficou tiririca pura
Porcaria na cultura tanto bate até que fura
Que droga merda
Cultura não é uma tchurma
Cultura não é tcha tchura
Cultura não é frescura
A brasileira é uma mistura pura uma loucura
A textura brasileira é impura mas tem jogo de cintura
Se apura mistura não mata
Cultura sabe que existe miséria existe fartura e partitura
Cultura quase sempre tudo atura
Sabe que a vida tem doce e é dura feito rapadura
Porcaria na cultura tanto bate até que fura
Cultura sabe que existe bravura agricultura
Ternura existe êxtase e agrura noites escuras
Cultura sabe que existe paúra botões e abotoaduras
Que existe muita tortura
Cultura sabe que existe cultura
Cultura sabe que existem milhões de outras culturas
Baixaria na cultura tanto bate até que fura
Socorro elis regina
A ditadura pulou fora da política
E como a dita cuja é craca é crica
Foi grudar bem na cultura
Nova forma de censura
Pobre cultura
Como pode se segura
Mesmo assim mais um tiquinho
Coitada representada
Como se fosse um nada
Deus meu por cada feiúra
Sem compostura
Onde era pixinguinha elizeth macalé e o zé kéti
Ficou tiririca pura
Só dança de tanajura
Porcaria na cultura tanto bate até que fura
Que pop mais pobre pobre pop

Itamar Assumpção

A poesia que a gente não vive...

"Escrever é algo que deve ser reservado para as noites de pura bebedeira. Embriaguez e solidão são ingredientes chave. Poemas com rimas ou estórias que tenham começo e fim simplesmente não são para mim."

Charles Bukowski

Quem se importa?
algumas pessoas falam
que eu tenho problemas com bebidas

meu único problema
é estar sóbrio

eu me considero um bêbado socialista
mais do que um bebedor social

às vezes a única felicidade
é a bebedeira
às vezes
nada mais importa

eu continuo me perguntando
porque me preocupo
quando ninguém mais se importa

acesse: http://blogdobuk.weblogger.terra.com.br/index.htm

12 janeiro, 2006

Análise

Tão ABSTRATA é a idéia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a idéia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.


Fernando Pessoa

S.O.S. para todos nós!


A morte me apareceu certa noite no quarto. Era uma menina vestida de negro, os cabelos loiros escorridos. O vestido era estufado, brilhoso. Assim que a vi, soube que era a morte. Recostou-se em um canto de parede à minha frente, os pezinhos cruzados, não usava sapatos.
Então, Hans, estás pronto?
Não, respondi-lhe agoniado.
Sorriu. Tinha os dentes negros e minúsculos. Assustei-me. Esperou que eu me acalmasse e perguntou:
Quanto tempo você ainda deseja?
Algum tempo.
Respondeu-me que era preciso que eu fosse mais preciso. A frase tinha humor e pude até sorrir. Disse-lhe:
Mais dez anos talvez.
Dez anos talvez, é hoje.
Impossível.
Não. Para ser mais exata: dez anos e dez dias. O tempo é outro quando eu apareço.
Senti náuseas e uma dor profunda no peito. Ainda pude perguntar-lhe:
Há uma outra vida?
Sim. Milhões de crianças como eu. Você será uma delas. É tedioso e até inaceitável, mas é assim.
O espelho do quarto refletiu um menino vestido de negro, calças curtas e camisa comum, os cabelos loiros escorridos. Olhei-me assombrado. Depois disso, nunca mais me vi.

Hilda Hilst

in Cartas de um Sedutor


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Que tal avivar o mito do Bambu Pelegrino neste nosso Brasil banguela e tão rico de ritos? Carnaval, Bicho, Bola, Anões, Saques, Cartolas , corruptas e obscenas cabriolas para escapar da jaula?
Oh, por favor, sorriam! Os corpos de todos nós estão curvos, os semblantes estão turvos, sorriam! Quanto a mim, tô saindo correndo, pois em vendo bambus, nestes tempos, só vejo tíbias.
E esculahmbem-se de novo por favor! Ando minguada e lívida de tanto amor!
Amor também doe, negada. Oi dói?

Hilda Hilst

in Cascos & Carícias
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Ao teu encontro, Homem do meu tempo,

E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras.
Te cantarei infinitamente
À espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses
Amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo
À tua mesa. As coisas serão simples
E redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza
E o difícil de antes,
Aparências, o amor
Dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra
Da semente. Te cantarei Aquele
Que me fe poeta e que me prometeu

Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti o que te deu.

Hilda Hilst

"Poemas aos homens de nosso tempo", parte IX

Sistema, forma e pepino

... sou um homem, tropeço, estou de bruços, de bruços, pronto para ser usado, saqueado, ajustado à minha latinidade, esta sim real, esta de bruços, as incontáveis infinitas cósmicas fornicações em toda minha brasilidade, eu de bruços, vilipendiado, mil duros no meu acósmico buraco, entregando tudo, tudo, meus ricos fundos de dentro, minha alma, ah, muito conforme o Seo Silva, muitíssimo adequado, tu de bruços, e no aparente arrotando grosso, chutando a bola, cantando, te chamam de bundeiro os ricos lá de fora, o seo Silva brasileiro,
seo Macho Silva, hôhô hôhô, enquanto fornicas bundeiramente as tuas mulheres cantando, chutando a bola, que pepinão, seo Silva, na tua rodela, tuas pobres junturas se rompendo, entregando teu ferro, teu sangue, tua cabeça, amoitado, às palpadelas, meio cego, cedendo, cedendo sempre, ah, Grande Saqueado, grande pobre macho saqueado, de bruços, de joelhos, há quanto tempo cedendo e disfarçando, vítima verde e amarela, amado macho inteiro de bruços flexionado, de quatro, multiplicado de vazios, de ais, de multi-irracionais, boca de miséria, me exteriorizo grudado à minha História, ela me engolindo, eu engolido por todas as quimeras.

Hilda Hilst

"Axelrod (da proporção)" in Tu não te moves de ti

Povo. Polvo

de cima do palanque
de cima da alta poltrona estofada
de cima da rampa
olhar de cima

LÍDERES, o povo
Não é paisagem
Nem mansa geografia
Para a voragem
Do vosso olho.

POVO. POLVO
UM DIA.

O povo não é o rio
De mínimas águas
Sempre iguais.
Mais fundo, mais além
E por onde navegais
Uma nova canção
De um novo mundo.

E sem sorrir
Vos digo:
O povo não é
Esse pretenso ovo
Que fingis alisar,
Essa superfície
Que jamais castiga
Vossos dedos furtivos.
POVO. POLVO.
LÚCIDA VIGÍLIA.
UM DIA.

Hilda Hilst
Poemas aos homens de nosso tempo, parte V

11 janeiro, 2006

Os Ombros que Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas dos teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue,
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

(Carlos Drummond de Andrade)

04 janeiro, 2006

Deus era um Palhaço

Naquela época de trevas metropolitanas, andava como um mendigo sem rumo ou destino. Quase sem vestes, e o pouco que vestia, estava sujo e poído. Tinha os pés no chão, de unhas pretas de fungos. Andava trôpego e bêbado, sem amigos e sem sentido. Sem o sem. A ausência era tão presente em sua vida, que praticamente não ligava para a própria existência. Não tinha medo, apenas fome e vontade de viver, apesar de tudo. Gostava de observar as pessoas, a maneira com que andavam, como se comunicavam entre si e com o mundo. Vivia apenas para ver e nunca ser visto, mas gostava disso. Era quase invisível. Andava e andava pelas ruas cinzas da grande cidade, sem endereço a chegar.
Um dia resolveu parar de andar. Estava cansado, com os pulmões doloridos pela pneumonia e os ossos quase quebrando de tão fracos. Sentou-se na grama da primeira praça que encontrou. Não sairia tão cedo dali. Cansou do cinza, agora queria o verde, o azul. Passou a fixar um olhar atônito para o céu, desde a hora em que o sol nascia até a hora em que se punha. Nem sempre o céu estava azul, muitas vezes estava tão cinza quanto as ruas por onde vagou. Passou a se sentir apenas uma cabeça, de tanta fraqueza que sentia o corpo. Sentia seu crânio como um balão que voa por aí, levado pelo vento.
Pensou na morte por alguns instantes. Não se incomodava com ela. Para ele, a morte era o fim da vida, e o que vivia, era ausência de vida. Então a vida é que era incômoda. Pensou nos amores que teve. Amou e muito. Amou tanto o mundo e a existência da humanidade que não conseguiu se fixar a um objetivo único. Tudo para ele foi válido, até a dor e o sofrimento. Trocou uma vida cômoda porém insatisfeita pelas ruas da cidade. Não aceitava ser um nome só ou um número no documento. Apenas quis ver tudo e não ser nada.
Ser o eu em terceira pessoa.
Atordoado, toda vez que olhava para o céu, limpo ou nublado, via uma bola vermelha. Mas não era qualquer bola vermelha, era aquela que só ele poderia ver. Seria um sinal de Deus? Toda vez que via a tal bola vermelha tinha uma vontade imensa de sorrir, com os poucos dentes que lhe restavam na boca. E sorria... sorria como uma criança. Sorria pois aquela bola vermelha lhe trazia tantas lembranças boas da infância, as mais puras que existiram. A bola vermelha lembrava um abraço quente de fraternidade. Lembrava o catar conchinhas na beira do mar. Cantigas de roda. Beijo molhado. Cheiro da terra depois da chuva. As capuchinhas do quintal de casa. Canto de sabiá.
Sentiu-se ridículo. Era ridículo. Tudo foi e sempre é ridículo. Sorriu por não ser nada mas ser ridículo e... pronto! Por um segundo ser ridículo fez todo o sentido para aquela existência que ele tanto anulava. Não sentia mais o corpo, mas enquanto os pensamentos ainda lhe viessem à cabeça, sentia-se vivo. Há muito não se sentia tão feliz.
A bola vermelha despertou a felicidade contida. Aquela felicidade como que guardada no fundo de um baú ou num álbum de fotografias.
E sorria o tempo todo, olhando para o céu.
"Deus é um palhaço", pensou.
E cerrou os olhos, para todo o sempre.