25 setembro, 2009

indivíduo

Caminhou vagarosamente embaraçado. Pela aparência poderiam até dizer que estava embriagado. Andava tonto, pendendo para os lados. Muitos olhos o olhavam de soslaio, com desdém. Quem seria este Zé Ninguém? Zé Ninguém tem nome próprio, teve família, teve história, mas nada disso interessaria a alguém. Poucos passos trôpegos entre os passantes e seus viços nas faces, fartura de carnes, Zé Ninguém parecia perdido entre verduras brilhantes. Pensava num pequeno milagre de ser invisível por alguns instantes. Indigente e invisível, o de costume, mas ali, naquele lugar, chamava atenção, uma atenção nojosa, enjoativa. Virou motivo de queixume. O homem-pêndulo carregando desespero por entre os rótulos gritantes das prateleiras. Antes que suas mãos carregassem qualquer força furtiva, caiu por entre os carrinhos. Chamaram a segurança, a guarda civil, a polícia militar. Burburinhos surgiram por todo o espaço. A gerência mandou remover logo, atrapalha as vendas. Um indíviduo solitário, julgado por sua falta de alma, falta de amor, falta de nome. Zé Ninguém era sim alguém... era apenas um homem com fome.

24 setembro, 2009

prolixamente humana

Dei-me às verbosidades, o silêncio superado por superabundâncias, nada de discurso lacônico e conciso, vou-me às palavras, ando às favas excessivamente circunstanciada, não tenho freios pra dizer o que digo e falo até sem frases, não existem sílabas suficientes às minhas significações, são minhas várias vozes gritando por meus olhos, bocas nos meus poros, cordas vocais até orelhas, vocabulário, léxico, elucidário, urro libertário! Incisivas, confusas, imaginativas, inventadas, sofridas, embargadas, orgasmáticas palavras, as minhas, aquelas e estas que posso dizer sem nem dizer, sem bem dizer, pessoa desmedida, prolixamente humana pelo que me sobra, pelo que me basta ser, pelo que nada mais me resta fazer.

22 setembro, 2009

o apanhador de cascavéis

Sálvio Silva, temido apanhador de cascavéis, cansado de urubuzar a vida destes pobres crotalídeos, certo dia resolveu bandonear por outras ilhas, trocar sua função de vida, quão difícil era apanhar cascavéis, essas bichas venenosas, barulhentas e cruéis. Apesar de não temê-las, achava que sua missão de apanhador havia de se encerrar, uma vez em que a prefeitura logo lhe iria exonerar, haja visto o tamanho problema que Sálvio certa hora arrumou em sua cidade, quando resolveu apanhar misteriosamente a primeira-dama, dona Getulina, perigosa cascavel de vereda, que andou se engalfinhando às escuras com um tocador de pífanos, seo Deoclécio. Pega de surpresa em sua empreitada, dona Getulina gritou com tanta força, mas tanta força, que até os mortos pularam das catacumbas, os bichos fugiram do zoológico, os padres se renderam ao diabo e a pequena população de Boiúna correu mato adentro, acreditando que o apocalipse finalmente havia chegado.
Passado o tumulto, Sálvio Silva finalmente decidiu que não servia mais para a função de apanhador de cascavéis, fugiu com a roupa do corpo com medo de linchamento, instalou-se na cidade vizinha, agora com nova função, de apanhador de galinhas.

17 setembro, 2009

reencontro

Mexo nas gavetas do passado
e na poeira da memória me revi:
pequena, miúda criatura saltitante
daquelas noites embaladas só por ti.
Aquele seu sotaque irreverente
ainda hoje, anos depois,
pude ouvir.

Ao esperar, sem mínima esperança
de revê-lo nesta vida novamente,
o mundo presenteia num instante
um reencontro mais que irreverente.

Fizeste parte de minha história,
minha infância,
digo até que tu és parte do que sou agora,
e me emociono, neste minuto, nesta hora,
por não estares somente em minha memória!
E preencho todos os vazios desta existência
quando de alegria e de carinho
meu coração chora.

Para Severino, figura especial que carrego sempre comigo.

degradação

Não tenho medo de degradar-me. Que me venham as rugas, os cabelos brancos e uma sabedoria que se compõe na medida da decomposição. Antes a degradação de sentar-me os dias em jardins floridos, de bocas abertas e ouvidos devotados aos céus espreitando pássaros, no aguardo paciente da culposa senhora ceifeira de vidas que não avisa quando vem, a rebaixar-me a dignidade e a grandeza de toda minha pequenice. Degradar-se de ser feio verbo reflexivo e suas visagens que nos causam sustos por conter nas entre-sílabas a fatalidade. Ainda não receio a ordem das coisas; os olhos flamejam por chamas dançantes que queimam calendários. Degrado-me vagarosamente, sujeita a modificar a substância das minhas estações. Dentre minhas chuvas ainda não caídas e constelações perdidas, desejo o simples das coisas. Quero apenas, ao longo, conjugar-me.

04 setembro, 2009

vontade

Me inclino e me movo a te querer,
te desejo sem pretensão nenhuma.
Apenas sorrio com tua presença,
meu peito enche feito lua cheia,
e no mundo, ao redor,
não resta coisa alguma.

Se ajo por impulso, nem percebo
e resisto em tentar entender
o que aqui dentro acontece.
Não há nada que eu possa fazer!
Eu também não conseguiria esconder
o que sinto, mesmo se quisesse.

Que me resta mesmo nesta vida?
Na efemeridade das coisas,
o sentir não pode ser pecado.
Me deixe gritar, de cima do telhado,
na sacada, na rua, no bar,
qualquer que seja o lugar:
quero ficar do teu lado!

Ah! Meu coração sarabanda
feito cata-vento...