20 março, 2007

Convite

Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério

A quatro mãos escrevemos este roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.

Lya Luft

15 março, 2007

de passagem

Até certo tempo atrás eu tinha medo da morte, achava que morrer deveria ser uma sensação horrível. Depois de tanto apanhar na vida, eu perdi esse medo. O descanso eterno deve ser como uma libertação. Algo como aquele sono profundo que a gente tem depois de um dia exaustivo.
Sei lá porque é que estou dizendo isso. Talvez porque eu sinta que, quase sempre, morre um pedacinho de mim para um outro poder nascer. Uma célula, uma idéia, um pensamento.
A vida é morte-vida, mas a morte - ah, a morte! - é só morte mesmo.

Parente

Parente é serpente
Mente e desmente
Exaustivamente.

Seja paciente
Seja tolerante
Seja demente
Como todo bom parente.

Ou pelo menos tente
Não levar uma vida doente.

Coloque seus parentes
Entre parênteses.
E veja como tudo muda
De repente.

Ecologia Poética

Salve uma palavra antes que morra no senso comum

por Fabrício Carpinejar

Como pensar em ecologia sem incluir a preservação das palavras? E com a ecologia das palavras, quem se preocupa? E os lençóis subterrâneos da fala que são contaminados pelo sarcasmo, pelo cinismo e, sobretudo, pela indiferença, quem cuida de sua prevenção?
Corremos o risco de perder a natureza quando deixamos que a linguagem fale em nosso lugar e não mais falamos por ela. Quando somente transferimos a responsabilidade de dizer e de nomear pelo ato de repetir.
Não é o comportamento que condiciona as palavras. Mas as palavras formam o comportamento. As palavras são o comportamento. Somos palavras.
De que adianta separar o lixo seco do orgânico se não separamos a linguagem orgânica da seca em nossa rotina? E a coleta seletiva da língua, onde fica?
De que vale cuidar do desperdício de água se não cuidamos também do desperdício de linguagem?
Não será igualmente criminoso usar palavras desnecessárias, sem entusiasmo, sem força de vontade, sem alegria? Por descaso ou por descanso. Para ser compreendido e não pensar. Pela pressa, sendo que a pressa aumenta o esquecimento, inibe a lembrança.
Por dia, quantas palavras são reproduzidas desprovidas de sentido? Lançadas na terra como latas de alumínio, que demoram mais de um século para se decompor.
Um lugar-comum é tão poluente quanto pilhas e baterias do celular. Expressões que nada têm de pessoal, que não permitem a descoberta ou o deslumbramento, estancam a circulação do afeto. Cessam o gosto de falar. Interrompem o gosto de ouvir.
Quantos fósseis são abandonados no cotidiano do idioma, quantos verbetes esperam sua chance de tratamento no aterro sanitário do dicionário? Será que não viramos fantasmas se portamos uma língua morta?
Poderíamos latir, poderíamos miar, poderíamos uivar, tudo isso é ainda comunicação. Mas falar não é somente comunicar, é se comprometer com a direção do timbre.
Palavras são de vidro. Palavras são de metal. Palavras são de plástico. Palavras são de papel. Não se pode colocar todas com o mesmo peso, no mesmo destino. É preciso discerni-las. Uma criança me entenderia.
Tolerância, por exemplo, é de vidro. Reboa por dentro. Faz volume antes de acabar. Não pode ser jogada fora, pois levará milhões de anos antes de virar pó.
Respeito, por sua vez, é de metal. Inteiriça. Difícil de quebrar. Fala-se de uma única vez como uma lâmina.
Condescendência é de papel, o acento vai lá no fim, suscetível aos rasgos da tesoura e das mãos ansiosas. Soletre, veja, imagine. Deite a voz, não fique de pé.
Assim como reciclamos o lixo, as palavras dependem da renovação. Mudar a ordem, produzir significação, exercitar gentilezas, valorizar detalhes. Não deixá-las paradas, desacompanhadas, viúvas.
Talvez seja daí minha incompetência em me desfazer do arranjo de rosas que recebo no aniversário de casamento. Desligo as pétalas do miolo e espalho as rosas nos livros. Fazem sombras para as frases.
É poluente dizer ao filho “nem se parece comigo” para ameaçá-lo. Uma convenção a que a maioria recorre para se livrar do cuidado, sacrificando um momento de particularizar sua experiência paterna e materna. Por que não procurar afirmar “você se parece comigo mesmo quando não se parece”?
Ou há algo mais solitário e desolador que resmungar “eu avisei” para sua mulher quando ela erra? Mostra que já a estava condenando antes de qualquer resultado e atitude. Em vez de cobrar, por que não compreender? Transformar o lixo hospitalar (sim, corta-se um braço dela com essa sentença) em adubo de frutas com a simples concisão de “a gente resolve”.
São períodos postiços, artificiais, fingidos, que corrompem a respiração. Ao encontrar um colega antigo, logo nos despedimos: “Vamos nos ligar?” Isso significa o contrário, não vou telefonar nos próximos três anos.
Até que ponto não se empregam palavras para se esconder o que se quer, para disfarçar, para ocultar? Quantos sinônimos para não dizer absolutamente nada. Para se afastar do que realmente se desejava declarar. Foge-se da palavra certa pela palavra aproximada. Uma palavra vizinha não mora no mesmo lugar da verdade.
Palavra é sentimento. Mas – cuidado – as palavras não podem sentir sozinhas.
Palavra é poder. Ao esgotar seu significado, esgotamos nossa permanência.


** publicado na revista Vida Simples, edição de março de 2007.

05 março, 2007

Aqui

Não uso palavras bonitas, não faço brincadeiras com as palavras dos dicionários e seus significados, não devoro enciclopédias. Eu gosto de ler. Só isso. Tão simples... ler. Encontrar um mundo novo e ser sorvida por ele. Vários mundos. Todos desenhados pelas palavras.
Este foi o espaço que encontrei para “vomitar” coisas que sinto, gosto, percebo. Nem sempre organizo bem as idéias, minha cabeça trabalha a todo vapor, eu escrevo o aqui já pensando no lá, e assim esse trem vai seguindo pelos trilhos, sem lugar certo para chegar.
Não pense você, que chega agora, que encontrará aqui críticas rebuscadas sobre os filmes que vejo, os livros que leio e as peças que assisto. Não. Posso até fazer referência a eles, mas sempre na tentativa de trazer o olhar para o sentimento, a emoção, a dúvida que ronda a nossa existência. E os que são citados só o são porque conseguiram despertar alguma coisa em mim, ruim ou boa.
Então, fique sabendo que absolutamente tudo que escrevo aqui é para mim mesma. Mesmo assim, acho bacana poder compartilhar isso com outras pessoas.
Eu criei um botequim virtual onde, na grande maioria das vezes, me encontro sozinha, sentada numa mesa, brindando comigo mesma esse tufão de emoções.
Quer participar? Então puxe uma cadeira, peça sua bebida e sinta-se à vontade...

A arte de irritar pessoas ou a cartilha do pseudo-sucesso

Primeira regra básica: diga a todo mundo que você é a encarnação de alguém famoso, como Galileu, Da Vinci, Platão, Mário de Andrade, Leila Diniz, Napoleão Bonaparte, Marlon Brando, Jesus Cristo... A lista é grande, portanto, seja sábio em sua escolha.


Segunda: realize algum ato público em prol de alguma coisa, de preferência acompanhado por uma massa de gente que acredite piamente no seu ser encarnado, a turba convencida e ensandecida de que está fazendo algo em nome de alguém. Pode mostrar a bunda em praça pública, defecar no saguão de mármore da prefeitura, jogar ovos na careca do governador, entrar de bico na festa de casamento de algum famoso da revista Caras e ainda arrumar aquele barraco quando for expulso pelos seguranças (importante: não esqueça de citar o “quem sou eu” para chamar a atenção da imprensa).


Terceira: candidate-se ao próximo Big Brother. Você, que já encarnou alguém famoso, acha que não há problema nenhum em ficar famoso só mais um pouquinho e, quem sabe, ganhar de quebra o carro do ano, uma ponta no programa Zorra Total ou na novela das oito. Pois mesmo encarnado Marlene Dietrich ou Getúlio Vargas, você continua pobre. No caso de ter encarnado Jesus Cristo, uma ótima opção é procurar alguma igreja neopentecostal pentelha, que lhe entregará as chaves do baú do tesouro. E não se esqueça de abrir algum debate no programa da Luciana Jimenez.


Quarta: coma mortadela e arrote peru. A encarnação de Tutancámon deve, como todo bom faraó, adorar o luxo e a riqueza. Ninguém precisa saber que o seu Mercedes-benz de 150 mil dólares será pago em suaves prestações, pela eternidade. Leve esse segredo para o túmulo, de preferência.


Quinta: lance um livro auto-biográfico e deixe o Chico Xavier de escanteio. Para quê psicografia, quando você mesmo pode contar, em vida, a história de sua vida passada e da atual? Aproveite para se candidatar a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Uma vez em que até o Ivo Pitanguy já tem sua cadeira garantida, você que é a própria encarnação do Camões terá grande chance de ser eleito.


Sexta: arrume um casamento. Seja com uma ex-prostituta ou com um guarda municipal, o importante é que seja da “ralé”. Nada mais chique do que um famoso como você, a própria encarnação de Luís XV, casar-se com um subalterno, com alguém da plebe, para fazer jus à teoria do “os seres humanos são iguais”. Pague um milhão para o seu esposo/esposa arrumar um amante, e corra aos prantos para os jornais. Depois, xingue os jornalistas e fotógrafos e compre um horário no programa do Faustão, onde você perdoará publicamente o autor/autora da sua dor de corno. Repercussão máxima.

Obs.: Se depois de todas essas tentativas você não atingir o sucesso, vá fazer alguma coisa de útil na vida, seu idiota!