16 novembro, 2006

A Morte Devagar

Morre lentamente quem não troca de idéias, não troca de discurso, evita as próprias contradições.

Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.

Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida.

Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo.

Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa parcela da população.

Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe. Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia. Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar.

Martha Medeiros

14 novembro, 2006

Dos nossos males

A nós bastem nossos próprios ais,


Que a ninguém sua cruz é pequenina.


Por pior que seja a situação da China,


Os nossos calos doem muito mais...

Mário Quintana

08 agosto, 2006

Tô sem tempo

Estou sem tempo
estou sem saco
pra escrever aqui.

Logo mais eu volto,
podem esperar.

Eu sei que volto
porque a minha verborragia
é difícil de segurar.

13 maio, 2006

Apaixonite aguda

Quando estou longe
Quero ficar perto
Quando estou perto
Quero ficar dentro
Quando estou dentro
Quero ficar mudo
Quando estou mudo
Quero dizer tudo

(Itamar Assumpção)

05 maio, 2006

Fresta

Não administre conflitos que não sejam seus.
Não ouça ninguém sem ouvir a si mesmo.
Não seja o que querem, seja o que quer.
Seja.
Não seja, se não quiser.

Não abandone tudo que lhe resta,
quando, olhando o todo,
não se enxerga a fresta.

Madrugada

Ah! De madrugada
é quando mais sonho acordada.

29 abril, 2006

Mãe da Rua

A Mãe da Rua é feminina, mas não mulher.
É um homem que nasceu com sensibilidade materna,
e tentou virar mulher.
Travestiu-se com seios de silicone,
virou a dama de todos os vagabundos.
É bonita e torta,
tem um braço quebrado
e uma perna quase morta.
Deve ter apanhado muito.
Ela me diz "bom dia" toda manhã
quando passo a caminho do trabalho.
Me deseja "bom serviço!",
acenando e sorrindo.
Ela é doce e delicada com os amigos
mendigos, maltrapilhos,
que compartilham o mesmo pedaço de calçada,
o mesmo pedaço de colchão de papelão,
às vezes o mesmo cobertor poído.
Mãe da Rua é vaidosa,
está sempre de rímel nos olhos
e unhas pintadas.
Apazigua as brigas da rapaziada,
dá comida na boca do bêbado
que se recusa a comer.
Mãe da Rua é o nome que eu criei
para esta figura anônima aos olhos dos transeuntes.
Ela não tem casa,
não tem dinheiro
nem dignidade.
Não sei seu nome,
nem sua idade.
Só sei que é triste
passar por ali todos os dias
e vê-la, sempre do mesmo jeito,
com toda simpatia,
até alguma beleza que foi mesmo beleza um dia,
a alegria dos miseráveis.
É triste porque a gente acaba se acostumando,
e assim nem ligando
para o que acontece ali.
A gente acaba abstraindo,
que do lado de lá da nossa janela,
existem milhares de pessoas
vivendo como vira-latas
nas grandes metrópoles.
Um dia um grande amigo disse:
"a gente é do tamanho dos nossos sonhos".
Essas pessoas sonharam,
ou tiveram pesadelos?

21 abril, 2006

06 abril, 2006

Sossega coração

Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme.
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.

Sossega coração e adormeça !

Fernando Pessoa


31 março, 2006

Lirismo

Estou farto do lirismo comedido
do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os enumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítco
Do lirismo que capitula ao que quer que seja for a de si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira

08 fevereiro, 2006

O real valor do dinheiro

Outro dia, depois de analisar o meu falido extrato bancário, fiquei pensando no por quê do ser humano ser tão escravo do dinheiro.
Por causa de dinheiro, as pessoas se anulam, se matam, se degladiam, adoecem e o pior, acreditam piamente que é a fórmula da felicidade.
Se o ser humano diz que sem dinheiro não se vive, é porque ele mesmo criou esta necessidade ao mundo, e isto chegou a tal ponto que para mudar a situação só se o mundo explodir e nascer de novo.
Imagine se toda a energia que jogamos ao trabalhar só pra ganhar dinheiro, pra pagar contas, para comprar isso ou aquilo, fosse aplicada no amor, na criatividade, no cuidado com a natureza, como seria o mundo e as pessoas que nele vivem?
Eu olho para aquele pedaço de papel e fico pensando qual o real valor do dinheiro, porque o valor que atribuimos a ele é mais abstrato que qualquer pensamento ou sentimento, e só pode ser lógico porque é um valor numérico, consequente da aritmética e da matemática.
Infelizmente, neste sistema que criamos, somos obrigados a perder boa parte de nossa vida correndo atrás destes pedacinhos de papel, destes numerozinhos virtuais nas maquininhas bancárias, que agem como um medidor das nossas alegrias e tristezas.
Quando as pessoas perceberem o real valor do dinheiro, entrarão em desespero para recuperar o tempo, o amor , a saúde, as alegrias, os amigos perdidos, as paisagens que não foram vistas.
Não vale a pena ter a conta cheia e a vida e o coração vazios.

Questionando a massa cinzenta

No dia em que a ciência descobrir uma maneira de mudar a cor da massa encefálica, eu me candidato a cobaia desta experiência.
Para que uma massa cinzenta, quando ela pode ser azul-turquesa? ou verde-musgo? cor-de-burro-quando-foge?
Quero a minha massa encefálica com todas as cores do arco-íris!
E quando isso acontecer, eu poderei balançar a cabeça e minha massa ficará branquinha!
Já pensou que efeito legal?

Melhor então seria ter um cérebro-camaleão.
Eu olharia para o céu e a massa ficaria azul
a lua, e ficaria prata
o sol, e ficaria laranja!
Só olhando São Paulo ela ficaria cinza
e nos momentos de meditação, transparente.

Para a imaginação, a criatividade, a música,
os sentimentos,
para todas as coisas abstratas,
aquelas que a gente não vê mas percebe,
a massa poderia ficar toda colorida,
mas não poderia ser misturada,
senão daria branco na hora em que a gente mais precisa!

Encontrado!

Um manuscrito em papiro encontrado dia destes nas areias quentes do deserto do Atacama, viajou das terras longínquas por km durante milênios carregado por um tatu, que não era bola, cortando a terra por baixo. Os escritos foram traduzidos do copta em braile ao português, que não era o da padaria.
Os arqueólogos afirmam que os manuscritos traduzidos sofreram graves alterações quando passearam pela região do sul da Itália. A princípio as escrituras traziam um breve histórico sobre a figura também histórica chamada de Calor, com o nome alterado para Calu e acrescentado o sobrenome de Baroncelli, brasão dos guerreiros fundadores do Podio Maggiore que aterrorizaram por séculos a traumatizada cidade de Firenze, ou melhor, Florença na língua do Joaquim.
Calor, ou Calu, era uma pobre híbrida coruja-papagaio-humano, espécie em extinção cujo nome de origem era olhus linguos bundus, no latim, e muito estudada por pesquisadores de religiões antropozóoficas.
Estes manuscritos foram escritos (rimô) pelo poeta-herói Leminskis Paulus, numa breve descrição da espécie:

Uma frase-superfície
onde vida-frase alguma
não seja mais possível.
Frase, não, Nenhuma.
Uma lira nula,
reduzida ao puro mínimo,
um piscar do espírito,
a única coisa única.
Mas falo. E, ao falar, provoco
nuvens de equívocos
(ou enxame de monólogos?)
Sim, inverno, estamos vivos.

A espécie foi extinta antes da era de Noé e, se tivesse sobrevivido, hoje seria alvo de pesquisas científicas importantes sobre as causas da surdez irreversível.

02 fevereiro, 2006

BBB: vendando os olhos do Brasil

BBB pra mim só tem um significado: Bela Bosta Brasileira. Não sou "big brother" de ninguém a não ser dos meus próprios de sangue, ou do amigo e camarada para todas as horas, onde na amizade não é necessário o voyeurismo ou o policiamento de sua vida nas 24 horas do dia. Isso sim eu chamo de "big brother" saúdavel. Tá, sabemos que a iniciativa foi criada pelos holandeses da "Endemongol", mas que eu saiba a Holanda é um país de gente bem educada, onde vale a pena pagar os impostos que são bem aplicados e investidos no país. Não estou dizendo que o Brasil é uma merda, aliás, amo meu país e por isso luto para que ele seja melhor. Estabeleço a comparação pela seguinte questão: o que é mais fácil de se manipular, um povo famélico e ignorante ou um povo educado e bem abastecido? E "famélico" não é só fome de comida, mas fome de educação, de cultura, de saúde, fome de viver e não de só sobreviver o tempo todo.
O povo brasileiro riu e muito com os vídeos gravados pelos pobres coitados candidatos ao BBB6 que não foram contemplados. Para mim, o mais engraçado foi ver que ninguém percebeu que a Globo nem ousou tocar no assunto de transmitir, também, o vídeo dos que foram selecionados. De cara, isso dá margem a diversas questões: quem escolhe? como? por que? quais os critérios de seleção? como se justifica os que foram selecionados?. E a pergunta que não quer calar: não seria isto um jogo de cartas marcadas? É o que parece mais provável. Eu começaria tudo com a seguinte pergunta: BBB pra que???
Quem, dentre estes milhões de espectadores, sabe exatamente o que há por trás de tudo? Será que já se questionaram? Pensar dói? Ou é mais fácil acreditar que é tudo justo e honesto, ou tampar os olhos para não ver, pois a vida REAL é um fardo muito pesado de se carregar e nós, pobres mortais, temos o direito de, de vez em quando, nos sentirmos como verdadeiras Alices saltitantes no país das bunda-maravilhas?

O BBB não é a cara do Brasil, e nunca será. Eu sou brasileira e, sinceramente, me sinto ofendida toda vez que alguém diz isso pra mim. Para disfarçar, e não dar um tom racista ou preconceituoso, a emissora escolhe um "gordinho", um negro, um mulato e até um nordestino, como se BBB fosse a "oportunidade para todos", um outro um pouquinho mais "culto" para equilibrar com a acefalia da maioria de "pitboys" e mocréias "pitanguisadas", com suas bundas saradas e balouçantes, seus fios dourados de descolorantes, esvoaçando pela casa, em meio ao som de "lacraias" e "tigrões", uma verdadeira orgia "quebra-barraco" camuflada. Ah... e quem não ganha o tal 1 milhão terá a chance de aparecer na "Caras" ou na "Ti-ti-ti", "Sexy" ou "Playboy", fazendo a alegria das madamas e de adolescentes espinhentos. Ou de causar "pânico" à população, como aquela japonesa de cabelo loiro e bunda de mulata, num "exemplo de miscigenação".
Se querem que o BBB seja a "cara do Brasil", então sugiro o seguinte: coloquem na mesma casa um mendigo, um flagelado à beira da inanição, um analfabeto, um artista (de preferência o que passa o chapéu pra ganhar um troco), um interno da Febem, um traficante e, para equilibrar, um político corrupto (candidatos não irão faltar). Ah, não se esqueça do policial e do jogador de futebol.
Aí, quem sabe, nos olhemos no espelho da nossa realidade e enxerguemos onde é que está a verdadeira "cara do Brasil", esta sim ainda muito distante das lentes das câmeras e das telinhas de TV.

Calu Baroncelli

01 fevereiro, 2006

Reinvenção

A vida só é possível
reinventada.


Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.


Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.


Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.


Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.


Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada

Cecília Meirelles

30 janeiro, 2006

Esperança

Todo o meu esforço canalizo para a vida.
Não para o equilíbrio, não para as certezas. Caminho suportando nas costas todo o peso da desesperança, pois que a esperança, é ridículo, dramático, que a humanidade ainda precise de tê-la.
Esperança em quê? Em remédios que curem?... Em poemas que se dão de mão em mão?
E as cartas sem resposta?
E os becos sem saída?
E a nova hipocrisia?
E o deus-dinheiro que nos espreita a cada esquina?... e a África?
E a América Latina?...
E todas essas universidades e tantos analfabetos?...
Toda gente sabe a extensão da verdade: surpreendendo a paisagem esfomeada, o gatilho já não precisa do dedo de ninguém.

Cruzeiro Seixas

22 janeiro, 2006

Incompreensível para as massas

Entre o autor e o público, posta-se o intermediário.

E o gosto do intermediário
é bastante intermédio, medíocre.

Medianeiros médios pululam nos meios, onde, galopando, teu pensamento chega.
Um deles considera tudo sonolento:
"Sou homem de outra têmpera! Perdão",
e repete um só refrão:
"O público não compreenderá".

Camponês, só viu um faz tempo, antes da guerra.
Operários, deu com dois, uma vez, numa ponte, vendo subir a água da enchente.

Mas diz que os conhece como a palma da mão.
Que sabe tudo o que querem!
Aqui vai meu aparte: chega de chuchotar bobagens para os pobres. Também eles, podem compreender a arte. Logo, que se eleve a cultura do povo!
Uma só, para todos.

Wladimir Maiakovski

O Anarquista

O anarquista que há em mim se junta com o ingênuo que há em você e propõe: "vamos fazer uma república utópica?".

O princípio da realidade passa com a sirene aberta, pára e nos autua em flagrante.

Alex Polari

O desbarato mais absurdo...

O desbarato mais absurdo não é o dos bens de
consumo, mas o da humanidade: milhões e milhões de seres humanos nasceram para ser trucidados pela história, milhões e milhões de pessoas que não possuíam mais do que as suas simples vidas.

De pouco ela lhes iria servir, mas nunca faltou quem de tais miudezas se tivesse sabido aproveitar. A fraqueza alimenta a força, para que a força esmague a fraqueza.

José Saramago

21 janeiro, 2006

É preciso não esquecer nada

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.

(Cecília Meirelles)

19 janeiro, 2006

18 janeiro, 2006

estamos todos certos e somos todos errados

tem gente que diz que papai do céu faz as pessoas em fornadas e,
quando pessoas da mesma fornada se encontram,
elas se reconhecem.

tem gente que diz que pessoas de verdade
reconhecem quem é de mentira.

tem gente que diz que a pessoa certa
aparece sempre na hora certa e,
por isso,
ela é certa.

tem gente que acha que todas as pessoas são certas,
menos uma – ela própria.

tem gente que não acha nada,
mas procura que nem o diabo a vida toda.

a gente é cheio de regras e dogmas
que servem como uma desculpa
pra justificar as coisas injustificáveis que fazemos.

você já deve ter ouvido alguém dizer
que você é a pessoa certa na hora errada
e – geralmente – quem diz isso
são pessoas erradas na hora certa.

Essa busca pelo certo e pelo perfeito
é louvável até certo ponto.

Mas só até certo ponto,
porque não sei se você sabe o que acontece
com o artista que fica a vida toda retocando o mesmo quadro

Fernando Tucori


acesse: http://terremototorquemada.blogspot.com/

Eterno...

"Eterno é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha
intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata..."

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"DEFINITIVO, como tudo que é simples!! Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram."

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Por muito tempo achei que a ausência é falta.

E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.



Carlos Drummond de Andrade




17 janeiro, 2006

SONETO 172 ANTOLÓGICO

As frases memoráveis da República
deviam ter, na pedra ou voz gravada,
registro, qual legenda avacalhada
num filme de comédia ou cena lúbrica.

"Prometo que agirei na vida pública
da mesma forma que ajo na privada!";
ou: "Fi-lo porque qui-lo!", tão surrada;
ou: "Não me deixem só!", suprema súplica.

Também vou proferir, eu que não minto,
a pérola imortal de quem adora
mandatos, completado o quarto ou quinto:

"Da vida partidária saio agora.
Já fiz o que devia, e alívio sinto.
Caguei, limpei a bunda, e vou-me embora!"

Glauco Mattoso

Meu ódio-amor...

Meu ódio-amor:
Tudo se esvai.
A hora se faz móvel
Escorrida
Sobre o corpo da vida.
Vou-me.
Pedra lisa e mar
Fixa-informe
Tento te segurar
Tu que és minha vida.
Morre
O mesmismo de mim
Se não me colo a ti.
Vagueio.
Alguém me vê
E aponta:
Dentro da flor aberta
Uma abelha morta.

Hilda Hilst

13 janeiro, 2006

Sabor de Burrice

Veja que beleza
Em diversas cores
Veja que beleza
Em vários sabores
A burrice está na mesa
Ensinada nas escolas
Universidade e principalmente
Nas academias de louros e letras
Ela está presente
E já foi com muita honra
Doutorada honoris causa
Não tem preconceito ou ideologia
Anda na esquerda, anda na direita
Não tem hora, não escolhe causa
E nada rejeita

Veja que beleza
Em diversas cores
Veja que beleza
Em vários sabores
A burrice está na mesa

Refinada, poliglota
Ela é transmitida por jornais e rádios
Mas a consagração
Chegou com o advento da televisão
É amigo da beleza
Gente feia não tem direito
Conferindo rimas com fiel constância
Tu trazes em guarda
Toda concordância gramaticadora
Da língua portuguesa
Eterna defensora

Tom Zé

Procures me amar...

"Procures me amar quando menos mereço, pois é quando mais preciso."

Mário Quintana

O Analfabeto Político

O pior analfabeto
é o analfabeto político
Ele não ouve,
não fala,
nem participa dos acontecimentos políticos

Ele não sabe que o custo de vida,
o preço do feijão,
do peixe,
da farinha, do aluguel,
do sapato e do remédio
dependem das decisões políticas

O analfabeto político é tão burro
que se orgulha e estufa o peito, dizendo que odeia política

Não sabe o imbecil que,
da sua ignorância política,
nasce a corrupção,
o menor abandonado, o assaltante
e o pior de todos os bandidos:
que é o político vigarista,
pilantra, o corrupto
e o lacaio das empresas nacionais e multinacionais.

Bertolt Brecht

Balangandans

É justo para se lamentar, a gente abrir mão de segundos
preciosos
Que talvez nos trouxessem direto um pro outro?
É justo que um pote de ouro venha ao seu encontro (e ao meu)
E desencadeie pânico, paralisação, desastres, desculpas?
É justo te dar um beijo na boca à margem da testa, da fala
E da escrita, de uma represa, uma festa?
é justo permitir que uma palavra desgovernada deixe minha boca
E aumente minha resistência a você?
Se uma pessoa só é uma máquina só
Se ela (provavelmente)
Canta, dança, pensa, treme
Aflita
Não será que tem respostas nas pontas dos dedos
-Dados, balangandans no pensamento-
Que costumem nos acompanhar?

Maurício Pereira

Cultura Lira Paulistana

A ditadura pulou fora da política
E como a dita cuja é craca é crica
Foi grudar bem na cultura
Nova forma de censura
Pobre cultura como pode se segura
Mesmo assim mais um pouquinho
E seu nome será amargura ruptura sepultura
Também pudera coitada representada
Como se fosse piada
Deus meu por cada figura sem compostura
Onde era ataulfo tropicália
Monsueto dona ivone lara campo em flor
Ficou tiririca pura
Porcaria na cultura tanto bate até que fura
Que droga merda
Cultura não é uma tchurma
Cultura não é tcha tchura
Cultura não é frescura
A brasileira é uma mistura pura uma loucura
A textura brasileira é impura mas tem jogo de cintura
Se apura mistura não mata
Cultura sabe que existe miséria existe fartura e partitura
Cultura quase sempre tudo atura
Sabe que a vida tem doce e é dura feito rapadura
Porcaria na cultura tanto bate até que fura
Cultura sabe que existe bravura agricultura
Ternura existe êxtase e agrura noites escuras
Cultura sabe que existe paúra botões e abotoaduras
Que existe muita tortura
Cultura sabe que existe cultura
Cultura sabe que existem milhões de outras culturas
Baixaria na cultura tanto bate até que fura
Socorro elis regina
A ditadura pulou fora da política
E como a dita cuja é craca é crica
Foi grudar bem na cultura
Nova forma de censura
Pobre cultura
Como pode se segura
Mesmo assim mais um tiquinho
Coitada representada
Como se fosse um nada
Deus meu por cada feiúra
Sem compostura
Onde era pixinguinha elizeth macalé e o zé kéti
Ficou tiririca pura
Só dança de tanajura
Porcaria na cultura tanto bate até que fura
Que pop mais pobre pobre pop

Itamar Assumpção

A poesia que a gente não vive...

"Escrever é algo que deve ser reservado para as noites de pura bebedeira. Embriaguez e solidão são ingredientes chave. Poemas com rimas ou estórias que tenham começo e fim simplesmente não são para mim."

Charles Bukowski

Quem se importa?
algumas pessoas falam
que eu tenho problemas com bebidas

meu único problema
é estar sóbrio

eu me considero um bêbado socialista
mais do que um bebedor social

às vezes a única felicidade
é a bebedeira
às vezes
nada mais importa

eu continuo me perguntando
porque me preocupo
quando ninguém mais se importa

acesse: http://blogdobuk.weblogger.terra.com.br/index.htm

12 janeiro, 2006

Análise

Tão ABSTRATA é a idéia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a idéia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.


Fernando Pessoa

S.O.S. para todos nós!


A morte me apareceu certa noite no quarto. Era uma menina vestida de negro, os cabelos loiros escorridos. O vestido era estufado, brilhoso. Assim que a vi, soube que era a morte. Recostou-se em um canto de parede à minha frente, os pezinhos cruzados, não usava sapatos.
Então, Hans, estás pronto?
Não, respondi-lhe agoniado.
Sorriu. Tinha os dentes negros e minúsculos. Assustei-me. Esperou que eu me acalmasse e perguntou:
Quanto tempo você ainda deseja?
Algum tempo.
Respondeu-me que era preciso que eu fosse mais preciso. A frase tinha humor e pude até sorrir. Disse-lhe:
Mais dez anos talvez.
Dez anos talvez, é hoje.
Impossível.
Não. Para ser mais exata: dez anos e dez dias. O tempo é outro quando eu apareço.
Senti náuseas e uma dor profunda no peito. Ainda pude perguntar-lhe:
Há uma outra vida?
Sim. Milhões de crianças como eu. Você será uma delas. É tedioso e até inaceitável, mas é assim.
O espelho do quarto refletiu um menino vestido de negro, calças curtas e camisa comum, os cabelos loiros escorridos. Olhei-me assombrado. Depois disso, nunca mais me vi.

Hilda Hilst

in Cartas de um Sedutor


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Que tal avivar o mito do Bambu Pelegrino neste nosso Brasil banguela e tão rico de ritos? Carnaval, Bicho, Bola, Anões, Saques, Cartolas , corruptas e obscenas cabriolas para escapar da jaula?
Oh, por favor, sorriam! Os corpos de todos nós estão curvos, os semblantes estão turvos, sorriam! Quanto a mim, tô saindo correndo, pois em vendo bambus, nestes tempos, só vejo tíbias.
E esculahmbem-se de novo por favor! Ando minguada e lívida de tanto amor!
Amor também doe, negada. Oi dói?

Hilda Hilst

in Cascos & Carícias
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Ao teu encontro, Homem do meu tempo,

E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras.
Te cantarei infinitamente
À espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses
Amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo
À tua mesa. As coisas serão simples
E redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza
E o difícil de antes,
Aparências, o amor
Dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra
Da semente. Te cantarei Aquele
Que me fe poeta e que me prometeu

Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti o que te deu.

Hilda Hilst

"Poemas aos homens de nosso tempo", parte IX

Sistema, forma e pepino

... sou um homem, tropeço, estou de bruços, de bruços, pronto para ser usado, saqueado, ajustado à minha latinidade, esta sim real, esta de bruços, as incontáveis infinitas cósmicas fornicações em toda minha brasilidade, eu de bruços, vilipendiado, mil duros no meu acósmico buraco, entregando tudo, tudo, meus ricos fundos de dentro, minha alma, ah, muito conforme o Seo Silva, muitíssimo adequado, tu de bruços, e no aparente arrotando grosso, chutando a bola, cantando, te chamam de bundeiro os ricos lá de fora, o seo Silva brasileiro,
seo Macho Silva, hôhô hôhô, enquanto fornicas bundeiramente as tuas mulheres cantando, chutando a bola, que pepinão, seo Silva, na tua rodela, tuas pobres junturas se rompendo, entregando teu ferro, teu sangue, tua cabeça, amoitado, às palpadelas, meio cego, cedendo, cedendo sempre, ah, Grande Saqueado, grande pobre macho saqueado, de bruços, de joelhos, há quanto tempo cedendo e disfarçando, vítima verde e amarela, amado macho inteiro de bruços flexionado, de quatro, multiplicado de vazios, de ais, de multi-irracionais, boca de miséria, me exteriorizo grudado à minha História, ela me engolindo, eu engolido por todas as quimeras.

Hilda Hilst

"Axelrod (da proporção)" in Tu não te moves de ti

Povo. Polvo

de cima do palanque
de cima da alta poltrona estofada
de cima da rampa
olhar de cima

LÍDERES, o povo
Não é paisagem
Nem mansa geografia
Para a voragem
Do vosso olho.

POVO. POLVO
UM DIA.

O povo não é o rio
De mínimas águas
Sempre iguais.
Mais fundo, mais além
E por onde navegais
Uma nova canção
De um novo mundo.

E sem sorrir
Vos digo:
O povo não é
Esse pretenso ovo
Que fingis alisar,
Essa superfície
Que jamais castiga
Vossos dedos furtivos.
POVO. POLVO.
LÚCIDA VIGÍLIA.
UM DIA.

Hilda Hilst
Poemas aos homens de nosso tempo, parte V

11 janeiro, 2006

Os Ombros que Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas dos teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue,
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

(Carlos Drummond de Andrade)

04 janeiro, 2006

Deus era um Palhaço

Naquela época de trevas metropolitanas, andava como um mendigo sem rumo ou destino. Quase sem vestes, e o pouco que vestia, estava sujo e poído. Tinha os pés no chão, de unhas pretas de fungos. Andava trôpego e bêbado, sem amigos e sem sentido. Sem o sem. A ausência era tão presente em sua vida, que praticamente não ligava para a própria existência. Não tinha medo, apenas fome e vontade de viver, apesar de tudo. Gostava de observar as pessoas, a maneira com que andavam, como se comunicavam entre si e com o mundo. Vivia apenas para ver e nunca ser visto, mas gostava disso. Era quase invisível. Andava e andava pelas ruas cinzas da grande cidade, sem endereço a chegar.
Um dia resolveu parar de andar. Estava cansado, com os pulmões doloridos pela pneumonia e os ossos quase quebrando de tão fracos. Sentou-se na grama da primeira praça que encontrou. Não sairia tão cedo dali. Cansou do cinza, agora queria o verde, o azul. Passou a fixar um olhar atônito para o céu, desde a hora em que o sol nascia até a hora em que se punha. Nem sempre o céu estava azul, muitas vezes estava tão cinza quanto as ruas por onde vagou. Passou a se sentir apenas uma cabeça, de tanta fraqueza que sentia o corpo. Sentia seu crânio como um balão que voa por aí, levado pelo vento.
Pensou na morte por alguns instantes. Não se incomodava com ela. Para ele, a morte era o fim da vida, e o que vivia, era ausência de vida. Então a vida é que era incômoda. Pensou nos amores que teve. Amou e muito. Amou tanto o mundo e a existência da humanidade que não conseguiu se fixar a um objetivo único. Tudo para ele foi válido, até a dor e o sofrimento. Trocou uma vida cômoda porém insatisfeita pelas ruas da cidade. Não aceitava ser um nome só ou um número no documento. Apenas quis ver tudo e não ser nada.
Ser o eu em terceira pessoa.
Atordoado, toda vez que olhava para o céu, limpo ou nublado, via uma bola vermelha. Mas não era qualquer bola vermelha, era aquela que só ele poderia ver. Seria um sinal de Deus? Toda vez que via a tal bola vermelha tinha uma vontade imensa de sorrir, com os poucos dentes que lhe restavam na boca. E sorria... sorria como uma criança. Sorria pois aquela bola vermelha lhe trazia tantas lembranças boas da infância, as mais puras que existiram. A bola vermelha lembrava um abraço quente de fraternidade. Lembrava o catar conchinhas na beira do mar. Cantigas de roda. Beijo molhado. Cheiro da terra depois da chuva. As capuchinhas do quintal de casa. Canto de sabiá.
Sentiu-se ridículo. Era ridículo. Tudo foi e sempre é ridículo. Sorriu por não ser nada mas ser ridículo e... pronto! Por um segundo ser ridículo fez todo o sentido para aquela existência que ele tanto anulava. Não sentia mais o corpo, mas enquanto os pensamentos ainda lhe viessem à cabeça, sentia-se vivo. Há muito não se sentia tão feliz.
A bola vermelha despertou a felicidade contida. Aquela felicidade como que guardada no fundo de um baú ou num álbum de fotografias.
E sorria o tempo todo, olhando para o céu.
"Deus é um palhaço", pensou.
E cerrou os olhos, para todo o sempre.