26 abril, 2007

Nota real

é possível amar um ser humano?
é claro, especialmente se você não os conhece muito bem. eu gosto de olhar para eles através da minha janela, caminhando na rua.
Stirkoff, você é um covarde?
é claro, senhor.
qual é a sua definição de covarde?
um homem que pensaria duas vezes antes de lutar com um leão com as mãos nuas.
e qual é a sua definição de homem corajoso?
um homem que não sabe o que é um leão.
qualquer homem sabe o que é um leão.
qualquer homem pensa que sabe.
e qual é a sua definição de um tolo?
um homem que não se dá conta que o Tempo, a Estrutura e a Carne em sua maior parte se desgastam.
então quem é que é sábio?
não existe nenhum sábio, senhor.
então não pode haver nenhum tolo. se não existe noite não pode existir dia; se não existe branco não pode existir preto.
sinto muito, senhor. eu pensava que tudo era o que era, não dependendo de qualquer outra coisa.
você andou metendo o seu pau em vasos de flores demais. será que você não compreende que TUDO está certo, que nada pode andar errado?
eu compreendo, senhor, que o que acontece, acontece.
o que é que você diria se eu tivesse que mandar decapitá-lo?
eu não seria capaz de dizer coisa alguma, senhor.
eu quis dizer que se eu mandasse decapitar você eu permaneceria a Vontade e você se transformaria em Nada.
eu me transformaria em outra coisa.
à minha ESCOLHA.
de acordo com ambas as nossas escolhas, senhor.
relaxe! relaxe! espiche as pernas!
muito gentil da sua parte, senhor.
não, muito gentil de ambas as partes.
naturalmente, senhor.
você diz que frequentemente sente essa loucura. o que é que você faz quando ela se apodera de você?
escrevo poesia.
a poesia é loucura?
não-poesia é loucura.
o que é loucura?
loucura é feiúra.
o que é feio?
para cada homem, uma coisa diferente.
a feiúra é conveniente?
ela está aí.
ela é conveniente?
eu não sei, senhor.
você aspira ao conhecimento. o que é conhecimento?
conhecer o mínimo possível.
como é que pode ser isso?
eu não sei, senhor.
você pode construir uma ponte?
não, senhor.
estas coisas são produtos do conhecimento.
estas coisas são pontes e armas.
eu vou mandar decapitá-lo.
obrigado, senhor.
por quê?
o senhor é minha motivação quando tenho muito pouca.
eu sou a Justiça.
talvez.
eu sou o Vencedor. eu vou fazer que você seja torturado, eu vou fazer você gritar. eu farei você desejar a Morte.
naturalmente, senhor.
será que você não se dá cota que eu sou o seu senhor?
o senhor é o meu manipulador; mas não há nada que o senhor possa fazer a mim que não possa ser feito.
você pensa que fala inteligentemente, mas com os seus gritos você não dirá nada inteligente.
eu duvido, senhor.
por falar nisso, como é que você pode escutar Vaughn Williams e Darius Mihaud? nunca ouviu falar nos Beatles?
oh, senhor, todo mundo já ouviu falar dos Beatles.
você não gosta deles?
eu não desgosto deles.
você desgosta de algum cantor?
cantores não podem ser desgostados.
então, qualquer pessoa que tenta cantar?
Frank Sinatra.
por quê?
ele evoca uma sociedade doente para uma sociedade doente.
você lê algum jornal?
apenas um.
qual?
OPEN CITY.
GUARDA! LEVE ESTE HOMEM PARA AS CÂMARAS DE TORTURA IMEDIATAMENTE E DÊEM INÍCIO AOS PROCEDIMENTOS!
senhor, um último pedido.
sim.
posso levar meu vaso de flores comigo?
não, eu vou usar ele.
senhor?
quer dizer, eu vou confiscá-lo. agora, guarda, leve esse idiota daqui!
e, guarda, volte com, volte com...
sim, senhor?
uma meia dúzia de ovos crus e alguns quilos de alcatre moída...

saem o guarda e o prisioneiro. o rei inclina-se para a frente, sorri maliciosamente enquanto Vaughn Williams vai se insinuando pelo sistema de comunicação. lá fora, o mundo movimenta-se para a frente enquanto um cão infestado de pulgas mija num lindo limoeiro vibrando sob o sol.

Charles Bukowski in Notas de um Velho Safado

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