30 abril, 2005

Bem no Fundo

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

(Paulo Leminski)

26 abril, 2005

Numerologia de Aniversário

Eu fiz 25
no dia 23
daquele mês que era 4
naquele ano 2005

Eu comemorei 25
no 498 da Manuel Dutra
desde as 21
até as 5

Recebi 30 mensagens
ganhei 400 abraços
e mais 10000 de beijos
sorriso infinito
deu-se como resultado.

21 abril, 2005

Eufemismos

Ainda me lembro, como se fosse hoje, da visita de um poeta cego aos estúdios da TV Cultura, quando eu ainda trabalhava no programa Provocações, de Antônio Abujamra. Fui eu quem recebi essa figura careca, de óculos escuros e bengala, antes da gravação do programa. Conversamos pouco, amenidades até então, eu estagiária e ele poeta cego, mas simpático e ilustre em sua maneira de ser. Ainda me lembro, como se fosse hoje, dessa presença que tanto me marcou. Seu nome verdadeiro é Pedro, mas todos o conhecem (os que conhecem) por Glauco Mattoso. E ele mesmo explicou, à rede pública de televisão, o por quê desse nome artístico: um trocadilho com "glaucoma", a doença que lhe deixou cego depois de adulto.
Ainda me lembro, como se fosse hoje, das palavras que marcaram esse momento "meu pesadelo é acordar. Porque quando eu estou dormindo, eu sonho com cores, com imagens, com paisagens, mas quando eu acordo é que vem o pesadelo de abrir os olhos e não enxergar absolutamente nada".
Na suas palavras finais da entrevista, expõe com raiva a ausência de tratamentos eficazes para esse e outros tipos de problemas de visão.

Dizem que só sentimos falta do que tivemos, então imagine como foi para este homem viver enxergando até os 44 anos de idade e depois ficar completamente cego. Imagine como foi para este homem ficar cego quando até então era também um poeta concretista, dentre outras coisas.
Lembre-se dos momentos finais da vida de João Cabral de Melo Neto, que anunciou que pararia de escrever quando soube da doença que o deixaria cego. Parou de viver.

Se você está lendo isso aqui, e agradeça por estar, você não tem noção. Eu não tenho noção, e espero nunca ter, porque deve ser muito doloroso.

Para isto, não existem eufemismos. Não dá pra suavizar. Não dá para ser suave quando se fica cego aos 44, como ele. Não há eufemismos para essa dor.

Hoje abri a maravilhosa revista Caros Amigos, edição de abril de 2005, uma peça rara da nossa mídia impressa, e ali estava um poema e um texto desse também maravilhoso e raro poeta Glauco Mattoso.

Boa leitura.

SONETO 911 BATISMAL

No manual de estilo está disposto
que Pequim é "Beijim" e estouro é "boom".
Bandido é "cidadão", bunda é "bumbum".
Prostituta é "modelo", cara é "rosto".

Mas que mania estúpida! Que gosto
de achar que flatulência ou peido é "pum",
que "alcóolico" é alcoólatra ou bebum,
como se trocar nome é trocar posto!

Pra mim, "beijim" é o beijo do mineiro,
"bumbum" é só bundinha de neném,
e puta é puta mesmo, bem rasteiro!

A mídia quer ditar o que convém;
porém, no linguajar do brasileiro,
não vem com viadagem, que não tem!

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A gente pode até achar que é muita cara-de-pau a do político, já quase no bico do corvo, que "namora" mulher muito mais nova, ou do astro pop viadíssimo que se "casa" com a vedete lindíssima, ou do craque feio que só a peste "saindo" ou "ficando" com alguma atriz famosa. Mas, pensando friamente, estão todos nas deles: compram o que seu dinheiro pode comprar. Não é culpa deles se as mulheres estão à venda. Pensando mais friamente ainda, nem é culpa das prostixuxas (mistura de puta com bruxa) se a cotação da carne está alta na bolsa de mercadorias. Afinal, elas só vendem o que têm pra vender, e têm que aproveitar enquanto é tempo. Bobeou, encalha. A conclusão acaba sendo a mesma de sempre: a culpa é da imprensa, que fica "badalando" e "repercutindo" esses contratos de curto prazo. E, pensando com o máximo de frieza, nem a imprensa é responsável pelo mascarado mercado nupcial das beldades e dos espantalhos endinheirados. A culpa é nossa, mesmo, que distraidamente engolimos essa mania de eufemizar que algúem tenha um "romance" ou esteja "namorando" com qualquer celebridade da vida. É como nas letras de pagode: ninguém declara que ama, só se fala em "paixão", mas o que se quer dizer mesmo é "tesão". Então, por que diabos não vão direto ao ponto e não admitem que só querem mesmo é foder? Já que é pra eufemizar, podiam ser mais objetivos. Em vez de cantar que "não posso segurar essa paixão", cantem logo que "preciso urgentemente introduzir meu membro viril na sua cavidade vaginal" ou coisa assim. Sem esquecer que o código do consumidor recomenda que a tabela de preços esteja exposta e bem visível. Quem sabe assim parávamos com essa frescura...

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Recomendo, por essas e outras, que você compre esse exemplar da Caros Amigos. Aliás, recomendo que você compre todos os exemplares. Além desse texto, leiam também a matéria do jornalista Emir Sader "Febens ou CEUs", que pretendo comentar logo mais, e a entrevista com a ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy. Fora o resto, que também é muito bom.

Por isso eu amo os ditos malditos! Eles sempre cutucam as feridas da verdade.

13 abril, 2005

Eu sou idealista, e daí?

Eu sou idealista sim. E daí? E você, é? Se não é, por que?

Eu não posso dizer que vou salvar o mundo, eu não vou salvar o mundo e sozinho ninguém vai. Mas eu quero ajudar a mudar o mundo. Um pouquinho que seja. 0,001%, mas eu quero. Já é alguma coisa.
Eu tenho vontade de chorar quando eu passo de ônibus no meio da favela do Jardim Elba, vindo pro trabalho, e vejo crianças brincando com lixo nos terrenos baldios. Quando eu vejo o ser humano vivendo em condições precárias. Quando eu vejo crianças pedindo esmolas nos faróis. Criança tem que brincar, tem que ir à escola, tem que ter cultura, tem que ter infância. Criança não tem que vender bala ou pedir moeda pra ajudar os pais, isso quando os tem. Criança não tem que trabalhar. Criança não tem que passar fome ou qualquer outro tipo de necessidade. Criança não tem que ser abandonada.
Eu sou idealista no Brasil. Pô, alguém tem que ser. Eu sei que não estou só, mas às vezes me sinto ridícula ou um tanto solitária nesses pensamentos, uma vez em que é um número mínimo de pessoas que idealizam um mundo melhor como eu. Eu queria que a fome no mundo acabasse. Que não existisse mais violência, nem corrupção. Que as pessoas brigassem menos e se amassem mais. Que o ser humano jogasse sua imbecilidade no lixo, e fizesse algo mais pelos outros seres humanos que precisam. Eu estou tentando... aos pouquinhos, com coisas muito pequenas, mas estou tentando. Pior seria se eu cruzasse os braços e achasse que o mundo não tem mais jeito.

Eu queria que todo ser humano pudesse viver em paz, ter acesso à educação, à cultura, ao lazer, tivesse um lugar bom pra morar. Que todo ser humano pudesse ter perspectivas e objetivos e acreditasse neles. Que todo ser humano parasse de passar a perna no outro.
Que todo ser humano pudesse viver num lugar melhor.

Eu sou idealista no Brasil.

03 abril, 2005

Dedicado aos Políticos e à Imprensa desse hospício chamado Brasil

Essa, com certeza, eu dedico a todos os políticos corruptos e principalmente, à nossa IMPRENSA fajuta desse sanatório a céu aberto chamado Brasil. É simples. Mas é crítico.
Obs: faço questão de postar bem grande.

MENTIR, PENSAR

O pior de mentir é que cria falsa verdade. (Não, não é tão óbvio como parece, não é truísmo; sei que estou dizendo uma coisa e que apenas não sei dizê-la do modo certo, aliás, o que me irrita é que tudo tem de ser "do modo certo", imposição muito limitadora.) O que é mesmo que eu estava tentando pensar? Talvez isso: se a mentira fosse apenas a negação da verdade, então este seria um dos modos (negativos) de dizer a verdade. Mas a mentira pior é a mentira "criadora". (Não há dúvida: pensar me irrita, pois antes de começar a pensar eu sabia muito bem o que eu sabia.)

e viva Clarice Lispector!!

EU SEI, MAS NÃO DEVIA

Tá vendo só? Tem um monte de coisas que a gente sabe mas não deveria saber. Ou até deveria, mas não tanto. Ou então, deixa pra lá e leia isso aqui. É bonito. Vocês vão gostar.

AHHH... dá pra ler de cima pra baixo e debaixo pra cima!

Eu sei, mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma.

Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.

A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida.

Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(do livro "Eu sei, mas não devia" - Marina Colasanti - Editora Rocco)

agora já pode ler daqui debaixo até lá em cima. E não é que continua fazendo sentido?