25 dezembro, 2009

para ti

De olho no mar onde o sol aponta todas as manhãs, os azuis de água e céu e outras cores indescritíveis, celebramos as divindades da natureza, em completa congruência, porto de nossas almas. E brincamos na lama escura do mangue, rindo à boca larga das esperanças grandes, inocentes e felizes das crianças, o riso mais puro que se tem na vida. Abrigo, refúgio, descanso. O amor pulsante em cada grão de areia.

16 dezembro, 2009

da celebração da vida

Ela nos deixou esta madrugada. Nos deixou para dançar num jardim de anjos e flores e coração aberto para o mundo. Ela nos deixou e ficou também, refletida numa estrela, quem sabe, um ponto de luz. E eu, que nada sei sobre a morte, celebro com gratidão a vida, pois o que me resta, neste momento, é saber que ela virou poema, como fez de poema sua vida.



Para Madalena, pra sempre junto da gente.

10 dezembro, 2009

da subjetividade do ser

Outro dia me olhei no espelho e questionei se aquilo que eu via era uma representação da minha mente, se era real ou um pensamento dominante. De tão volátil e efêmera, sem duração, me senti um personagem de ficção, uma idéia vã de uma imaginação sem fundamento. Respirei fundo, olhei de novo e só consegui chegar a uma única conclusão: eu sou um devaneio.

Depois daquele dia, nunca mais me vi.

08 dezembro, 2009

paragem

Quero a próxima estada a beira-mar
- cura e repouso -
que os cantos urbanos inspiraram cansaço.
E se posso e passo, de mala em punho
pra uma paragem de céu e água,
o amor fazendo companhia,
flores na estrada,
desta vida quero eu mais nada...

Que tudo seja sonho e canção
e passarinhos pousando na janela...

07 dezembro, 2009

o nome da minha nova banda é...

Cansei de Ser Medíocre.

frustração

Tentei buscar o significado dos meus sentimentos no dicionário, mas só encontrei palavras sem sentido.

caminhão

Um caminho é feito de muitos caminhos.

o difícil exercício da não compreensão

A alma às vezes dói e nem sempre é preciso entender por quê - deixe-a ali, esquecida e vazia como uma mariposa morta. Não compreender pode ser bonito, digno e pode poupar uma porção de inquietações, de dúvidas, de incertezas, as sofríveis perguntas sem respostas, a falha busca de conceitos vãos. Mas não compreender, para mim, é exercício difícil, é esforço homérico de abstração, e me parece muitas vezes que seja necessário o pensamento vago, a ausência de um sorriso ou uma lágrima, ou algo que me valha para não enlouquecer.

da emergência vital

Sentimentos maciços recaem sobre minha cabeça e não entram no vocabulário dos homens. Transmito meu entusiasmo de uma alma à outra por outra forma de comunicação; elas dão as mãos e se convidam: vamos tonificar a vida? Viver a experiência salutar da emergência, o pulo do impulso essencial, sendo assim, renovada, a vida se mostra por sua vivacidade quando tudo tornado poesia seja, dentro, fenômeno da nossa liberdade.

24 novembro, 2009

circunstância

Há lodo e poesia nos meus devaneios. A minha imaginação sem fundamento, vã e incoerente, me põe de pé nos dias todos. Nas noites, mesmo acordada, entrego-me às impressões de minha alma. Deixo-me por instantes. E quando volto, desvaneço depressa, pois sou caminhante transitória neste mundo, passante a vida de idéias e amores e abrigos ilusórios. Sou mera circunstância, sem motivo de ser. Aqui aconteço.

11 novembro, 2009

apagão

Apagões podem ser muito produtivos. Pela casa ressoavam os belos sons do velho piano de minha mãe. Ela empolgada em recuperar seus repertórios de memória, e eu ninando criança e cachorro com vocalises improvisadas. Para os vizinhos, funcionou como berceuse para dormir cedo, aproveitando o ensejo da escuridão. Ainda bem que piano e voz não necessitam de luz elétrica pra funcionar. A luz que eles necessitam é outra.

30 outubro, 2009

passageiro

Passa depressa, não...
o local que tu transita muda a gente.
Quero dizer, mudei eu. Sim.
Não tudo, porque não dá, né?
Mas mexeu, assim,
que nem furacão que passa na cidade.
Não devastação. Tou falando errado. Peraí.
Já sei! tipo terremoto.
Tremeu tudo aqui dentro.

Dizem que o que é bom dura pouco, mas não na cabeça,
essa dona de casa que manda e desmanda
no que a gente sente.
Não passa, não, vai. Fica aqui.
Eu sei pouco da vida, eu sei.
Ela também passa depressa, não é?
Só um pouquinho que seja, então.
Senta aqui do meu lado. Me dá a mão?
Não passa depressa, não...

janelas

Acho lindo o modo como fecha as janelas. O corpo nu recostado levemente à parede, as palmas abertas tocando o vidro, te imprimindo as digitais. O olhar perdido lá fora observando a luz negra da noite e o movimento da cidade. O respiro profundo e denso entre as cortinas.
Acho lindo o modo como fecha as janelas. O jeito que recosta a cabeça no travesseiro em doce cansaço. Da forma que me fitas carinhosamente. Como cerra os olhos à espera do dia amanhecer.

Acho lindo o modo como fecha as janelas.

21 outubro, 2009

(m)eu-poema

Queria ganhar um poema que dissesse algo sobre mim...
um poeminho análise.
Sem julgamentos.
Um poeminha injusto e indiferente
mas que diga de fora aquilo que não posso ver.
Pode ser um soneto,
ou um hai-kai...
denso e discreto,
discurso direto
ou indireto.
Entrelinhas são desnecessárias.
Que as sutilezas todas sejam entendidas.

Eu peço um poema pra mim.

Mas o mundo é tão vasto e louco,
a vida tão séria e sem juízo,
o universo tão infinito e incompreensível.
Por que um poema pra mim?
Justo pra mim?
Olho tudo à volta e caio na real:
não mereço um poema.
Só os poemas que me merecem.
Reduzo-me à minha insignificância,
à minha invalidez dentro disso tudo,
a minha falta de talento de ser musa,
de ser obra terminada,
pois sou a ruína de um edifício em construção.

Eu-poema?
Acordo e dou por mim
nem receio mais quando me lembro
que palavras não fazem curva
quando bate o vento.

do risco

No embate entre desejos e possibilidades, sigo tentando, muitas vezes errante... ainda assim, prefiro o risco e suas consequências à inércia que mata vagarosamente.

dúvida

Pairam dúvidas em meu ar
e não respiro.
O coração põe-se a palpitar:
por que? por que? o quê? o quê?
Mil perguntas a pulsar.

Sou precipitada, um exagero de gente.
Chego a ser até caricata.
Mas pelo menos sou transparente...

Só que a transparência pode se confudir
com o invisível.
É aí onde morrerá meu medo,
quando terei tornado a mim
o intangível.

25 setembro, 2009

indivíduo

Caminhou vagarosamente embaraçado. Pela aparência poderiam até dizer que estava embriagado. Andava tonto, pendendo para os lados. Muitos olhos o olhavam de soslaio, com desdém. Quem seria este Zé Ninguém? Zé Ninguém tem nome próprio, teve família, teve história, mas nada disso interessaria a alguém. Poucos passos trôpegos entre os passantes e seus viços nas faces, fartura de carnes, Zé Ninguém parecia perdido entre verduras brilhantes. Pensava num pequeno milagre de ser invisível por alguns instantes. Indigente e invisível, o de costume, mas ali, naquele lugar, chamava atenção, uma atenção nojosa, enjoativa. Virou motivo de queixume. O homem-pêndulo carregando desespero por entre os rótulos gritantes das prateleiras. Antes que suas mãos carregassem qualquer força furtiva, caiu por entre os carrinhos. Chamaram a segurança, a guarda civil, a polícia militar. Burburinhos surgiram por todo o espaço. A gerência mandou remover logo, atrapalha as vendas. Um indíviduo solitário, julgado por sua falta de alma, falta de amor, falta de nome. Zé Ninguém era sim alguém... era apenas um homem com fome.

24 setembro, 2009

prolixamente humana

Dei-me às verbosidades, o silêncio superado por superabundâncias, nada de discurso lacônico e conciso, vou-me às palavras, ando às favas excessivamente circunstanciada, não tenho freios pra dizer o que digo e falo até sem frases, não existem sílabas suficientes às minhas significações, são minhas várias vozes gritando por meus olhos, bocas nos meus poros, cordas vocais até orelhas, vocabulário, léxico, elucidário, urro libertário! Incisivas, confusas, imaginativas, inventadas, sofridas, embargadas, orgasmáticas palavras, as minhas, aquelas e estas que posso dizer sem nem dizer, sem bem dizer, pessoa desmedida, prolixamente humana pelo que me sobra, pelo que me basta ser, pelo que nada mais me resta fazer.

22 setembro, 2009

o apanhador de cascavéis

Sálvio Silva, temido apanhador de cascavéis, cansado de urubuzar a vida destes pobres crotalídeos, certo dia resolveu bandonear por outras ilhas, trocar sua função de vida, quão difícil era apanhar cascavéis, essas bichas venenosas, barulhentas e cruéis. Apesar de não temê-las, achava que sua missão de apanhador havia de se encerrar, uma vez em que a prefeitura logo lhe iria exonerar, haja visto o tamanho problema que Sálvio certa hora arrumou em sua cidade, quando resolveu apanhar misteriosamente a primeira-dama, dona Getulina, perigosa cascavel de vereda, que andou se engalfinhando às escuras com um tocador de pífanos, seo Deoclécio. Pega de surpresa em sua empreitada, dona Getulina gritou com tanta força, mas tanta força, que até os mortos pularam das catacumbas, os bichos fugiram do zoológico, os padres se renderam ao diabo e a pequena população de Boiúna correu mato adentro, acreditando que o apocalipse finalmente havia chegado.
Passado o tumulto, Sálvio Silva finalmente decidiu que não servia mais para a função de apanhador de cascavéis, fugiu com a roupa do corpo com medo de linchamento, instalou-se na cidade vizinha, agora com nova função, de apanhador de galinhas.

17 setembro, 2009

reencontro

Mexo nas gavetas do passado
e na poeira da memória me revi:
pequena, miúda criatura saltitante
daquelas noites embaladas só por ti.
Aquele seu sotaque irreverente
ainda hoje, anos depois,
pude ouvir.

Ao esperar, sem mínima esperança
de revê-lo nesta vida novamente,
o mundo presenteia num instante
um reencontro mais que irreverente.

Fizeste parte de minha história,
minha infância,
digo até que tu és parte do que sou agora,
e me emociono, neste minuto, nesta hora,
por não estares somente em minha memória!
E preencho todos os vazios desta existência
quando de alegria e de carinho
meu coração chora.

Para Severino, figura especial que carrego sempre comigo.

degradação

Não tenho medo de degradar-me. Que me venham as rugas, os cabelos brancos e uma sabedoria que se compõe na medida da decomposição. Antes a degradação de sentar-me os dias em jardins floridos, de bocas abertas e ouvidos devotados aos céus espreitando pássaros, no aguardo paciente da culposa senhora ceifeira de vidas que não avisa quando vem, a rebaixar-me a dignidade e a grandeza de toda minha pequenice. Degradar-se de ser feio verbo reflexivo e suas visagens que nos causam sustos por conter nas entre-sílabas a fatalidade. Ainda não receio a ordem das coisas; os olhos flamejam por chamas dançantes que queimam calendários. Degrado-me vagarosamente, sujeita a modificar a substância das minhas estações. Dentre minhas chuvas ainda não caídas e constelações perdidas, desejo o simples das coisas. Quero apenas, ao longo, conjugar-me.

04 setembro, 2009

vontade

Me inclino e me movo a te querer,
te desejo sem pretensão nenhuma.
Apenas sorrio com tua presença,
meu peito enche feito lua cheia,
e no mundo, ao redor,
não resta coisa alguma.

Se ajo por impulso, nem percebo
e resisto em tentar entender
o que aqui dentro acontece.
Não há nada que eu possa fazer!
Eu também não conseguiria esconder
o que sinto, mesmo se quisesse.

Que me resta mesmo nesta vida?
Na efemeridade das coisas,
o sentir não pode ser pecado.
Me deixe gritar, de cima do telhado,
na sacada, na rua, no bar,
qualquer que seja o lugar:
quero ficar do teu lado!

Ah! Meu coração sarabanda
feito cata-vento...

31 agosto, 2009

coexisto

relativa
coexisto em virtude
de uma causa extrínseca
de uma cousa intrínseca

não sou essencial
mas verossímil
provável
necessária
e plausível

sou inútil

ínsipida e inodora
mas nunca incolor

uma incógnita
uma variável
em gênero, número e grau
alguma coisa de valor
independente do sinal

portanto
tornei-me inerente a mim
para nunca estar sozinha
até o final.

24 agosto, 2009

rito

Em face de tua face
serena e terna
mantive-me entregue
ao rito de Eros
- este culto especial -
nosso deleitoso desígnio.
Na dramaturgia das horas
perdi-me preenchida
de teus caminhos,
inundada fartamente
por teus rastros
que dentro de mim seguiam.
De emoção terna
fui tomada
ao alcançar o cume.
E o mundo lá fora era um vazio,
pois construímos um universo
entre as paredes
que por nós sorriam, suadas
por tantos deslocamentos
de carícias e carinho.
De sensações, compusemos
grande peça orquestral:
doçura deliciosa de nossos sons,
como assim conjugo agora
tal obra em verso,
inspirada por delicados sentimentos.
Da dedicação íntima destes anseios,
resta a cerimônia suave e demorada
que não cansa.

Que não cansa.

E não cessa.

18 agosto, 2009

liaison

À procura de um rumo profundo, penetrante no interior dos corpos e suas moléculas, ela o convida a caminhar por sobre o bruto artefato de sua couraça animal, fina e macia, feito tecido de algodão. Ele, em toda graça de sua imaginação, tateia o invólucro como uma aventureiro em exploração, e ela se arrepia por toda eletricidade de suas mãos, duas estrelas irradiando energia em seus volumes, transfigurando a abundância de sua formas. Sobrepostos e invertidos, imprimem nos lençóis rastros luminosos em pura revolução orbital, e os olhos fixos em firmamento cintilam, até Vênus despir-se para eles, pouco antes do amanhecer, despreocupadamente nesta verve pululante do querer.

12 agosto, 2009

folguedo

Como se fora música, a coisa descrita
não se calça de meros adjetivos.
De fato memorável a ousadia grita
sem delongas racionais:
prazer inopinado que nos causa a vista,
coisa que surpreende, espanta e agita.
É substância pura e inamovível,
em sua conjugação de ser verbo defectível.
Tão tomados pelo labor, tão distraídos
não percebiam, no calor da movimentação,
olhares curiosos que no entorno não abatiam
em momento algum tal grau de excitação.
Ao céu o corpo celeste em órbita elíptica,
a iluminar alma e matéria em conexão plena,
arrebatadas por excessiva inspiração.

Da ligadura entre dois corpos que comunicam
júbilo, deleite e satisfação;
deste lugar onde se passa de um ponto a outro
como acordes formados em sucessão,
evocação agradável aos ouvidos, pele, mãos,
que em regozijo lascivo fez-se canção.

Dois artistas em ruidosa alegria
exaltados em intensa e sublime criação.

01 agosto, 2009

ancestral

moço robusto de olhos verdes
carregando peso de sacos de farinha
a vender sábado na feira
pé descalço na estrada quente
pés de areia

em seu andar depressa no interior das alagoas
deu-se a topar com meia dúzia de cangaceiros
de lamparina acesa a tropa de lampião
corrida a fuga a deixar os seus lá atrás
atravessando brasis a procurar outro verão.

Para meu avô Ilídio, olhar de mar de saudades.

férias
















de tanto em tanto fiz-me agora
firmando, a mim, o olhar de fora
céu recheado a me acalantar
de estrelas velando o sono
e bando de cigarras a me ninar
meu peito enchido em canto mareia
e eu reclamo olhando pra lua cheia
sobre as dunas de meus sonhos de areia

a noite grita em caruaru
em mamanguape me espero como tal
abri meus olhos de mel pro verde de maceió
e chorei de saudades sentindo o cheiro de natal.

06 julho, 2009

equilibrista

Equilibrista
nas pontas dos pés
revolve a linha da vida
que bambeia e bambeia
e o coração da aramista
aos pulos, no susto bombeia
mas ela é equilibrista
e não titubeia
faz juz ao sangue
que percorre tuas veias

Equilibrista
a dor no peito
pede um movimento arriscado
sofrendo, pende-se para um lado
amando, pende-se para outro
é sua alma em equilíbrio
num corpo cansado
mas ela é equilibrista
e não caminha errado

Equilibrista
segue na corda bamba
de braços abertos
celebrando o existir
a vicissutude, a instabilidade
seus portos do devir
Em antagônicas tendências,
ela não se abate
pois é equilibrista
entre a dureza e a alegria,
sorri, mesmo sem platéia,
celebrando sua essência de artista.

24 junho, 2009

mon cœur

Paciente e esforçado, não tão benevolente, nem tampouco compassivo, ele se retrai em cansaço. Mergulhado em larga franqueza, já disse tudo o que sentia, foi generoso, responsável, reinventou-se e refletiu, variante sem designação, ficou farto, amou incondicionalmente e foi amado, feriu-se pulsionado em sua dinâmica, esta de pulsar sem freio nem pouso, de ser sempre o centro motor de impulsos e, mesmo repetitivo em suas ações, quis expurgar suas faculdades afetivas, sentiu-se vago, extremado e enfraquecido, perdeu o brio e a coragem, resignou-se de seu próprio destino... enfastiado de tudo e todos, recriou-se em sua imaginação, pegou o primeiro vôo para longe e agora, sossegado e feliz, solitário porém preenchido de novas sensações, transfigura-se belo dançarino que, sem vontade de ser encontrado, chora a calma das madrugadas ao contemplar a vida transcendida pelo toque suavemente intenso de guitarras e castanholas, sentado à mesa de um café cantante, e sorri à sua volta pelos espíritos desesperados, perdidos na Andaluzia dos poemas de Garcia Lorca.

16 junho, 2009

insensata

Perdoem-me a minha insensatez. Ando pra frente procurando o horizonte que se encontra atrás de mim, volto-me a mim mesma procurando as direções que tracei à lápis, um sol na diagonal brilhando me faz cerrar os olhos, e cega de sentidos apalpo obstáculos que me rondam, pulo um, tropeço em outro, errando e acertando sempre, posso cair e levantar numa única fração de segundo, e quando a luz da lua me colore com aroma de patchuli, eu danço o fim e início de meus tempos, brinco de ciranda agarrando fortemente os que me apertam e se distanciam aos poucos, imutável e espontânea perco a faculdade de julgar, exalo por meus poros um espírito cuja forma reflexa é razão e emoção, é tudo e nada... a minha insensatez é a minha criança que brinca de bilboquê à espera de que a bola flutue para o céu e desça feito um meteoro que me atinja a fronte, abrindo minha mente para o mundo e espalhando pedaços de mim pelos lugares por onde ainda não passei.

29 maio, 2009

l’inspiration de l’artiste



a arte traduz

minha existência

antes que me esqueça

de lembrar

quem sou.

travesseiro

é um grande amigo
que ouve meu choro
(baixinho)
e me abraça
(quentinho)
pra me consolar.

dunas

meu coração é beira de mar
bordejado por dunas
de medos, de amores
esses montes de areia
que a vida, feito vento
carrega pra algum lugar.

pássaros

há pessoas que são como pássaros
pousam em minha mão
e voam, num piscar de olhos

simplesmente, se vão.

28 maio, 2009

eis a questão

quantos adjetivos acompanham
determinantes
os verbos da existência?

o poeta

E era assim que ele seguia em suas primitivas interpretações, senhor de tantas fabulações sobre o mundo, sempre tão incompreendido, porém nunca ingênuo, não era louco, apenas gostava de alegorias, expunha fatos através de símbolos criados com tanta maestria, divididos entre a realidade e o enigma, a dúvida e a certeza. Sentava-se à beira de calçadas para contar suas histórias, incríveis, fantásticas, a quem gostava de ouvir, perambulava por aí, vaticinando seu próprio futuro, "morrerei ao final de outro dia!", arrancando gargalhadas pelo óbvio... porém o óbvio não aconteceu, os séculos se foram e este senhor não morreu, ficou doente, foi preso, torturado, mas sobreviveu, e hoje vive a andar pelas ruas das cidades, a contar as histórias das gerações, uns acreditam, outros nem escutam, já tentaram interná-lo, perturbá-lo com falsas verdades, mas nada atinge de fato este imortal poeta, que tem o nome de Liberdade.

22 maio, 2009

brinde

No fundo
toca a música
do mundo,
tilintar de copos,
gente a gargalhar.

Eu, aqui, pensando
com meus pontos
brindo com poesia
na mesa do bar.

tela

Minhas pálpebras
abrem e fecham
feito leque
se vejo a vida
pintada numa tela
registro de alma em cor,
vibrante e bela,
que deixa minha vista enternecida.

E quando, ao penetrar
por tal janela,
meus olhos procurarão
razão que eu sinta,
mas descubro que o sentir
não se interpela
e uma lágrima escorre
e me mancha
feito tinta.



Para Hugo Perucci, alma que colore o mundo.

20 maio, 2009

distância

esta extensão que separa corpos
que separa afetos
que separa passos
não diminui a grandeza de nossos laços
te encontro nas músicas,
nos livros, nos retratos,
pensando no que contigo vivi
lembranças das nossas pequenas alegrias
que não me deixam perder-me de ti
mas o que há é apenas distância física
outros abrigos
amigos que vão e vem
amores vãos
mantemos dadas nossas mãos
e, representando graficamente o que me dói,
unindo pra sempre nossas verdades,
rascunho este penoso sentimento
traduzido na palavra SAUDADE.




Para Bruno, meu irmão.

nublada

dias cinzas sempre me dão melancolia
o sol se pôs como todo dia
e não vejo tanto sua luz
um raio atravessa a janela
o vento corta minha espinha
minha pupila não dilata
feixes derretem meus brios
sinto frio e fome em meus vazios...

lá fora está tudo azul
céu azul de meio de dia
e, no chão, só meu vulto sorri

algo nublou dentro de mim.

via

Qual percurso segue esta pobre alma, inflada em suas presunções, que carrega a crença malfundada de si mesma, atropelando seres com o peso de sua arrogância descendo a ladeira feito trator sem freio, pobre alma esta, pobreza que se faz em falta de humildade, em falta de olhar para si e ver que seu sangue misturado ao de outros possui a mesma cor, a cadeira em que hoje se senta não lhe faz digna nem soberana, vá em frente, pobre alma, engate a quinta marcha da bazófia na corrida desta competição sempre desnecessária... a rodovia da experiência é via de mão dupla, numa arriscada ultrapassagem fará com que se choque de frente com o poste da realidade e, só assim, verás que se desintegras facilmente em milhares de partículas, sem privilégio de levantar vôo, pois és feita desta mesma matéria de onde surge uma espécie inteira, nem menos, nem mais, somente ser humana e, portanto, que sejas humana com os demais.

15 maio, 2009

o universo em mim

Na movimentação do tórax, não é apenas o ar que me invade, preencho uma existência harmonicamente disposta, me ocupo de muitas realidades, gêneros humanos e instintos animais, rumino galáxias inteiras dentro de meu corpo que iluminam meu espírito, dilato meus talentos, estabeleço conexões entre o céu e a terra, entre olhos e coração, entre eu e outro, e transbordo o todo em pedaços, de meu centro às extremidades... carrego um universo em mim.

13 maio, 2009

depoimento pessoal

Difícil conciliar a minha alma feminina, quando esta ultrapassa todo esteriotipo criado para tal gênero em tempos pós-modernos, século 21 e homens afoitos por capas de revistas, assim caminho, sandália rasteira e pé no chão, que não suporta o bico fino salto Luís XV torturante matando aos poucos, sigo em frente, olhando para o céu sem sombra nem rímel, só quando tem lua e quando lua cheia de amante com perfume delicado, batom esporádico marcando estes lábios juvenis que tem sede de vida e fome de expressão, ando um pouco, capaz de chorar com o colorido das flores de jardim e de rir histericamente com cerveja e torresmo à pururuca no botequim, dou um passo, e vivo a poesia, a sutileza e a escatologia numa mesma cadência, me jogo, um longo pulo na arte e um chute no saco da caixinha de tantas polegadas hipnotizadoras de seres e sonhos, me levo, carrego marcas da maternidade nas linhas finas e longas curvas do meu corpo, este corpo feminino pequeno mas nunca miúdo que sofre e sente e se comunica e pensa e sobe nas alturas, me movimento, de um lado a outro procurando sanar as dores e rimá-las com meus amores, todos e tantos, tantos e todos que tudo a mim significa, verbo reflexivo de ser, de ser eu, somente soul, assim, afinada na música do mundo canto a mim, e canto por todos, e por tudo, até o fim.

11 maio, 2009

tempo


Um longo lapso, marcado no mesmo compasso, desfaz-se no curso dos anos, determinado ainda que não exato. Resiste próprio de certos atos e, implacável, muda sua substância, dilata e tem um prazo, transtorna sua atmosfera, é um fenômeno e um passo, contado, medido, até entrar em colapso. No giro imaginário do Sol, permanece gasto, incontrolável e oportuno, metáfora prematura da ação dos verbos que, distraído de suas ocupações, trabalha em vão... e existe, apenas existe, veloz porém sem pressa, numa dada ocasião.

visita

Um dia acordou de repente com uma visita inesperada tocando a campanhia. Se arrependeu de tê-la deixado entrar. Sem saber o que fazer, ficou dias a fio tentando escondê-la dentro da gaveta, não queria olhar para ela, trancou com cadeado e fez questão de jogar a chave no lixo. Ela incomodava, falava alto, perturbava o sono. Mas não teve jeito. A dor estava ali, se encontrando com ela face a face para onde ia, olhando profundamente em seus olhos grandes e deixando bem claro que ela não poderia fugir. Não tinha jeito. Ela teve que encarar sua dor, teve que olhar para ela, teve que gritar com ela, tentou expulsá-la, expurgá-la, exorcizá-la, mas parecia que fazer isso se tornava pior, porque tudo aumentava de tamanho a cada tentativa.
Até que ficaram frente à frente, como num duelo. Ao invés de tentar matá-la, abraçou sua dor, beijou-a, e convidou-a para um café, conversaram a tarde toda, se entenderam e ficaram amigas... E não era tarde quando a dor se despediu, abriu a porta, e foi embora, feliz, sem saber, exatamente, quando estaria de volta.

08 maio, 2009

espetacularizada

Em meio ao cansaço, esparramada entre almofadas de linho e colchas de cetim, ela se rende à sua total infelicidade. Carrega na cara bolsa todo maquinário rebordoso para manter seu requinte, entre a maquiagem e o peeling, a plástica e o verniz luxuoso reluzente de sua fala, ela dá falta de si mesma, procura incessantemente algo que lhe valha destaque, brilho e glamour, ela se espetaculariza a fim de que seja vista e ouvida por muitos, ainda que isso, no fundo, nada tenha de real valor. Ela pensa e crê fielmente, que na sua verdade aparente, conseguirá profundamente encontrar amor... mas por dentro ela chora pesado, carrega no peito tamanho fardo de não saber escolher o sapato ou a dor, ela se rende e abre o armário, ela solta um urro desesperado, põe fogo em tudo ao seu lado, se deixa levar no arder da chama, acreditando que assim, talvez, apareça alguém que reclama, alguém que por sua vida clama, alguém que realmente lhe ama... e tudo queima e corrói, o que sobra é só resto de tristeza e cinzas, e o silêncio mortal e profundo que, ao final, ninguém quebrou... Ela também não se amou.

04 maio, 2009

banquete

Cheia de voluptuosidade, avançando sobre os mais belos e pobres mortais e devorando-os com tal sagacidade, ela se encontra neste banquete com sua própria nudez. Despe-se de carne e de espírito, dissoluta e libertina, entre línguas, pernas e abdômens, mãos tateando numa busca voraz, ela, deusa encantadora de almas e homens, entrega-se com tal devoção ao banquete que, entre o devorar e ser devorada, torna tal ritual como uma reza, um mantra, e dá seu grito de redenção, deixando-os lívidos porém ávidos e sedentos, abatidos pelo cansaço do mais farto entendimento destes mistérios gozozos e divinos, constantes e corajosos, e essencialmente primordiais.

30 abril, 2009

o sentido da vida

O sentido da vida não traça linha reta nem caminha pela mesma superfície, é ar e matéria de dor e prazer, ação e imaginação, está sempre exposto e escondido ao mesmo tempo em que uma consciência corre em sua procura.
O sentido da vida não tem sentido nem razão, apenas forma e volume de desentendimento, etéreo pensamento, onde tantos fracassaram em sua incessante e inocente busca...
O sentido da vida não é uma conclusão séria que se finaliza. O sentido da vida é, apenas, um filme do Monty Phyton.

26 abril, 2009

o amor em seu caminho



Quando aparecer amor em seu caminho, não desvie, não mude o horizonte, não o deixe ali, sozinho, estático, procurando um olhar iluminado que o receba... o amor que aparecer em seu caminho, ainda que ínfimo, mínimo, imperceptível, é amor, e em amor não se pisa, amor não se destrói, amor tem alma própria que, a qualquer momento, pode se desprender e se degradar aos poucos, rendido à atmosfera do vem-vai do mundo, do ir e vir de hoje e amanhã, pois amor nasce e morre na mesma cadência em que tudo se move e comove, enquanto a vida pulsar dentro da gente.


Goya
por Hugo Perucci
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23 abril, 2009

ano novo

Geralmente quando dizem "ano novo, vida nova", fico pensando se a vida há de ser nova a cada ano novo ou se a vida há de ser renovada a cada dia novo.

Pensando bem, fico com a última opção.

22 abril, 2009

convidativa

Dê-me tua mão, devagarinho. O tempo corre e escorre, mas não é preciso pressa, apenas dê-me tua mão, devagarinho, onde tudo é superfície e profundeza, onde tudo é eterno e fugaz, dê-me tua mão, devagarinho, e diga-me uma frase ao pé do ouvido, e devagarinho, andemos numa via de mão dupla, abrimos um caminho, dê-me tua mão, devagarinho, nos enrosquemos em membros e lábios, devagarinho, respiremos, transpiremos e ofegantes, nos afoguemos em nós mesmos, e devagarinho, um longo mergulho, um salto mortal de carne e desejo, mas sempre devagarinho, estafante porém leve, mansinho, devagarinho, faço um carinho em seus cachos até que, devagarinho, adormeças como criança em meus braços.

17 abril, 2009

crisálida


Em seu apelo constante, insistente atenção à tentativa de ser coesa num mundo incoerente, ela se dissocia do todo em silêncio. Liberta, porém, ainda presa e dividida, na batalha diária desta vida, ela grita calada em sua rotina, rotina de guerrilha pelo pão da cria, ela exala perfume doce de flor, na rotina de ser inventiva, alquimista e dançarina, ela se reinventa artista, menina-mulher, fêmea selvagem, primitiva e pós-moderna, camponesa e cosmopolita, ela se aprisiona em si mesma, pela salvação de sua consciência... e se transmuta, transforma, transcende a solidez de seu corpo como arma, sua alma, até que se abra novamente e, generosa, linda, persiga estrelas e vagalumes, e se perceba, de repente, mais leve e intensa de amor.

Crisálida - obra de arte contemporânea
por Hugo Perucci


um longo adeus


Um longo adeus a Reinaldo Maia.
o Teatro brasileiro perde
e todos nós, juntos, também perdemos.

"ainda há espaço para a sua indignação! ocupe-o ou cale para sempre!"

07 abril, 2009

melagkholikós


Apareceste assim, rosto abatido, coração desconsolado, olhar vago e triste, sem persistir, sem me procurar. Eu te iluminava, persistente, mas não te voltavas a mim, você não me via, não me olhava, eu refletia numas águas e, ainda assim, teu pensamento era morto, eu existia ali sem exisitir. E você, sem querer, sem perseguir... não bastava que eu fosse ensolarada, não bastava que tivesse a mim antes de findar o dia, antes deste horizonte ter um fim.

o mundo em suas mãos


Quando a vida atrofia, o titeriteiro chora. Procura desesperado por seus dedos maleáveis, seus olhos ágeis fitam os que conduziam movimentos e emoções. O tempo escorre pelos fios, páram as articulações como se, assim, parassem seu próprio coração. Seus filhos, outrora desencadeadores de tristezas, alegrias, sofrem esquecidos num depósito. Quando a vida atrofia, o titeriteiro chora o que não mais existe: o mundo em suas mãos.

03 abril, 2009

sussurro

O sussurro da tua voz era doce, caramelo melando meus ouvidos, cansados dos ruídos, cansados das lamentações. O sussurro de tua voz era meigo, um afago no rosto, mão macia em pêlo de gato, mão macia na minha mão. O sussurro de tua voz era limpo, claro e transparente, como a lágrima que em meu rosto escorre. O sussurro de tua voz me atravessa, eu tremulo, me arrepio inteira, e aguardo ansiosamente pelo momento de saber, afinal, quem és e o que queres realmente me dizer.

30 março, 2009

costureira


que sejam sempre incompreensíveis minhas palavras, meus retalhos, ora bem costurados, ora bordados, ora adornados, cheios de adereço, pontos, tranças e fuxicos, essa colcha de palavras são mosaicos, não tentem compreendê-las sempre, apenas compreenda que há o caos, é meu novelo de vida, puxo um fio, dois, três, dou um ponto, em cruz, trançado, sonho no meio, um bordado, de repente tudo desfaço, refaço no tear dos dias, me repenso, desligo a máquina, abro buracos com agulhas, furo um dedo, choro, depois rio um rio de risos, pra vida ficar macia que nem algodão, tecer, tecido, ter sido, aqui sigo, costureira de minhas atitudes, pensamentos, fabulações, artesã de mim desfio minhas linhas, minhas curvas, há o novelo, é meu caos de vida, cosendo, correndo, páro de arfar porque tudo, afinal, ficará guardado dentro da caixinha.

realidade

Cinzenta, suja, poeirenta, barulhenta, o entorno urbano desta realidade às vezes me atormenta. Sobre as várias rodas pela via vou buscando outras formas, volumes e cores desta realidade, realidade minha, vista somente por estes grandes olhos que a podem perceber. Sigo pela via esperançada de que há em próximos quilômetros de estrada outro universo a ser explorado, outras gentes, outro ar. Busquei nas lonas o meu refúgio, encontrei pessoas que gostaria de ter encontrado noutras realidades que vivi, se me fosse possível criar diferente relação de tempo-espaço, anteriormente, já deveria estar ali. De fato, o tanto que vi, quanta gente interessante conheci, é outra realidade ainda que minha sempre, onde eu vá e para onde a carregue.
São meus olhos, cores, volumes, formas, o mel de meus olhos. Mil corações num único. Alma leve. E o lamento de tudo parecer sempre tão breve.

27 março, 2009

Dia Nacional do Circo



Minha cidade amanheceu risonha
Chegou o circo, está a anunciar,
Grita o palhaço da perna de pau,
Minha gente acorda para ouvir cantar.
E eu, menino, moleque de rua,
Vou bem na frente prá chamar atenção,
Talvez me vendo assim animado,
Me dê entrada o dono da função.

Oh! Raia o sol, suspende a lua,
Olha o palhaço no meio da rua.

Quanta alegria. Foi armado o circo!
Está em festa o largo da matriz.
Em volta dele corre a meninada,
E eu brincando junto também sou feliz.
"Zé Fogueteiro" hoje vai ao circo
"Todo exibido", veio me contar.
Prá queimar fogos, já ganhou bilhete,
No camarote diz que vai sentar.

Oh! Raia o sol, suspende a lua,
Olha o palhaço que está na rua.

Para juntar dinheiro eu vou depressa,
Vender cocadas que a doceira fez;
Vou lavar vidros, vou vender garrafa,
Ou engraxar sapatos prá qualquer freguês.
E se de noite, prá meu desengano,
Eu não puder sentar na arquibancada,
Eu, de "gaiato" vou "forçando" entrada,
Bem escondido por baixo do pano.

Oh! Raia o sol, suspende a lua,
Olha o palhaço no meio da rua.

25 março, 2009

A gente se vê


A gente se viu ao pé duma escadaria, no meio do sobe e desce, loucura de fim de tarde de sexta-feira. A gente se viu na porta do cinema, no bar, na bilheteria, a gente se viu vendo filme sem ver o momento de chegar o fim. A gente se viu com frio na barriga, na garoa, descendo a rua. A gente se viu num beijo, é como se víssemos o que queríamos ver ali. E a gente se viu várias vezes, era vontade de se ver o tempo todo todo o tempo, a gente se viu de alma leve e límpida, a gente viu que era possível. Mas aí a gente se viu sem querer ver, a gente viu que possível era impossível também. "A gente se vê", hoje, a gente diz.

18 março, 2009

exercício segundo

Para Lili

Ela recebe flores e velas. Todos choram. Olhos se transformam em ilhas, rostos de crepúsculo, espinhos atravessando no peito. Ela brilha como estrela. E recebe flores e velas. Enquanto isso, no jardim, os deuses a convidam para dançar.

17 março, 2009

exercício primeiro

Acordar de manhã e não precisar abrir o armário, num pulo da cama pra dentro de uma calça, blusa ou vestido, sem precisar escolhê-lo no dia anterior e em nenhum outro momento qualquer. Fazer tranças no cabelo curtíssimo e lançá-las pela janela. Ao lance de um pensamento elas se alongam até o chão. Lá debaixo não há princípe, nem sapo, talvez um doido, um palhaço. Quando ele subir pelas minhas tranças eu já não terei cabelos, apenas asas. E o deixo ali mesmo, a me olhar voando mundo afora, feito libélula afoita por uma pétala de flor.

minha voz


Tenho uma voz que soa no mundo, que ecoa pelo mundo. Com meu peso, meu equilíbrio, meu movimento, é minha voz que por aí caminha, a passos lentos. A voz que fala pelo texto, é a voz que cala a palavra, voz que soa pelo vento. Minha voz, meu movimento. Mensagem de dor, de sofrimento. Aconchego, amor e sonho. Ritmo e talento. Minha voz é meu corpo. Minha voz, meu tempo. Sentimento.

04 março, 2009

19 fevereiro, 2009

momento

Ainda não era momento de ouvir sua voz de novo.
Mas não tive a sorte de estar longe da sala quando tocou o telefone.
Não era momento de dizer "tudo bem" quando, na verdade, está tudo uma merda.
Não, eu não estou bem.
Tou achando tudo um saco, pra dizer a verdade.
Minha vontade de ir embora não é só pra fugir da cidade.
É pra fugir de tudo.
Fugir de tudo em que me apeguei por aqui.
Isso inclui você.
Não é só você.
Mas inclui você.
Tudo bem que eu posso fugir por aqui mesmo.
O problema é que onde eu vivo
e com quem eu convivo
não é uma zona neutra.
Não é um lugar onde não haja resquício de lembrança sua.
Isso vai desde o trajeto de casa até o trabalho,
e outros lugares mais.
Os ônibus que vão pra sua casa.
E tem pessoas.
E as relações todas minhas e das pessoas
e, mesmo que eu não pergunte,
e realmente eu não pergunto,
de alguma forma, vou saber sobre você.
O mínimo do mínimo, mas vou saber.
De toda forma, parece maldição
ou praga que alguém rogou em mim:
por mais que eu fuja para um lugar distante
você ainda está em mim.
Eu sonho contigo todos os dias
e os sonhos sempre são bons.
Aí eu acordo
e vejo uma realidade muito diferente.
Não, não está tudo bom.
Aí, me sinto com uma coisa
que uma vez alguém chamou de lepra espiritual.
Cada dia cai um pedaço da alma.
Eu queria falar com você
mas não neste momento.
Porque, nesse momento, eu ainda estou morrendo aos poucos
e quando acho que não estou mais morrendo
a vida me dá um sinal: está sim.
Desliguei o telefone e corri para o banheiro chorar.
E senti de novo uma dor profunda no peito,
na garganta,
no estômago.
Me senti ridícula,
idiota,
fraca,
impotente,
incapaz de não sentir dor nenhuma.
Não, não era momento de falar com você.
Mas eu não pude evitar
e se assim aconteceu
talvez seja a vida me dando um outro sinal: era sim.
Era momento de eu entender que
lhe dizendo que tá tudo bem
ou tá tudo uma merda,
não faz a menor diferença.
Você não vai se importar.

04 fevereiro, 2009

resquícios

Achar felicidade nas quinas, esquinas, cantos e rodapés, rodopiando dentro do quarto ao som de samba, na cadência iluminada pela luz quente, amarela, dentro do lustre que carrega mosquitos mortos. Encontrar alegria nos livros já lidos e nos que ainda não foram explorados, sentir cheiro de papel envelhecido, amassado, dos bilhetes de outrora. Abrir a janela e não ver a aurora, nem crepúsculo, apenas olhar pra cima e ver o céu lá fora. A tontura dos rodopios embaça a vista que tenta ler os encartes dos vinis esparramados pelo quarto, uma vez que se quebrou a agulha da vitrola. Um violão, um pandeiro, uma gaita, um caxixi e um chocalho, adormecidos no armário esperando a próxima oportunidade para serem acordados. Um quarto que carrega um inteiro de memória e amor que nunca foi quarto nem metade. Amor único e inteiro, espalhado numa cama de solteiro. Amor e dois travesseiros. Um deles, hoje, chora o vazio da solidão.

03 fevereiro, 2009

Dores do mundo

por Xico Sá

Uma das grandes vantagens das mulheres sobre nós é a coragem, o destemor, de chorar em público. Se o choro vem, as mulheres não congelam as lágrimas, como os moços,pobres moços... Não guardam as lágrimas para depois, como sempre adiamos, não levam as lágrimas para chorar escondidos em casa.

Pior ainda é o homem que não chora nunca. Além de fazer mal ao coração, esse tipo não merece muita confiança. As mulheres não, falo da maioria das moças, desabam em qualquer canto e hora. Se estão mal de amor, choram na firma, no escritório mesmo, na fábrica, choram no trânsito, choram no metrô, simplesmente choram.

Como invejo as lágrimas sinceras das fêmeas.

Quantas vezes a gente não se preserva, por fraqueza, enquanto as lágrimas, em cachoeira, batem forte no peito machista e viram apenas pedras do gelo do uísque.

Como invejo as mulheres que misturam sim o trabalho com o drama heavy metal da existência. Desconfio da frieza profissional, das icebergs de tailleur, que imitam os piores homens e guardam tudo para molhar o travesseiro solitário numa noite de inverno.

Ora, as mulheres podem ser infinitamente poderosas, administrarem plataformas de petróleo nos mares... e chorarem um atlântico diante de uma alma perra e sem cuidados.

Lindas e comoventes as mulheres que choram em público, nas ruas, nos bares, nos restaurantes, nas malocas, no táxi. São antes de tudo umas fortes. Tristes dos que estranham ou ficam envergonhados com o mais verdadeiro dos choros. O medinho do macho diante do pênalti que vale uma vaga no torneio da dignidade.

20 janeiro, 2009

desconcertada

Teria que pegar tudo aquilo e jogar dentro da mochila. Fazia uma semana que tinham se separado, e reunir os objetos dele não estava sendo fácil. A cada livro dele que mexia, uma lágrima caía. Sentia uma dor profunda no peito, um vazio, vontade de morrer e nascer de novo num mesmo instante.
Tinha que jogar tudo na mochila e assim o fez. Saiu desconcertada pela rua, como se caminhasse por um buraco negro, por uma paisagem sem paisagem. As ruas não tinham nada, nem edifícios, nem carros, nem fumaça, nem semáforos, nem pessoas, só ela e as imagens desse amor que passavam como um filme.
Pegou o ônibus, desconcertada, e lá dentro bateu a dúvida de ter pego a condução errada, sem atenção, de parar em algum outro lugar que não o que haviam combinado. Não queria se atrasar para aquele que seria, talvez, um último encontro de se desencontrarem definitivamente.
Chegou antes do horário, pegou uma cerveja no bar. Suas mãos tremiam que nem vara verde. Antes de acabar a cerveja ele chegou, de ar tranquilo, mas ela não conseguiu sorrir.
Em momento nenhum ela conseguiu sorrir.
Nem ao ouvir que ele ainda a amava, apesar de tudo.
Deram um último abraço.
Ele se foi.
Ela voltou pra casa, com o andar trôpego, meio bêbado de dor, desconcertada. Pensava naquele caminho, naquela linha de ônibus que pegou tantas vezes pra voltar da casa dele, pensava nele, pensava neles, no que viveram e no que um dia, juntos, sonharam viver.
Desconcertada, não dormiu aquela noite. Fumou um maço de cigarros, olhando fotos e bilhetes dele, meu deus, como se amaram até a última gota e se queriam bem.
Chorou por muitos dias seguidos, sempre rezando no fundo de sua alma para que aquela dor passar, para aquela culpa passar, para se sentir mulher de novo, ter sua paz de espírito de volta. Para poder sentir saudades sem chorar, sentir saudades com um sorriso maroto de olhar pra trás e se orgulhar do que passaram juntos.
E como há dores que só o tempo cura, ela hoje vive seus dias, um após o outro, sem sonhos, sem desejos.
Segue a vida ainda desconcertada, e com o coração partido ao meio.

09 janeiro, 2009

volátil

Seria bom se, no auge de meu desespero, Deus me desse a oportunidade de evaporar.

Amar

é mergulhar de cabeça
sem saber nada
sem saber de nada
ao seu encalço
numa piscina
como um camicase
pulando do último
do mais alto trampolim
de mim
sem asa delta
salva-vidas, pára-quedas
sem perguntar
sem sequer pensar
se lá embaixo
vou encontrar água
ou o ladrilho do vazio

Armando Freitas Filho