Naquela época de trevas metropolitanas, andava como um mendigo sem rumo ou destino. Quase sem vestes, e o pouco que vestia, estava sujo e poído. Tinha os pés no chão, de unhas pretas de fungos. Andava trôpego e bêbado, sem amigos e sem sentido. Sem o sem. A ausência era tão presente em sua vida, que praticamente não ligava para a própria existência. Não tinha medo, apenas fome e vontade de viver, apesar de tudo. Gostava de observar as pessoas, a maneira com que andavam, como se comunicavam entre si e com o mundo. Vivia apenas para ver e nunca ser visto, mas gostava disso. Era quase invisível. Andava e andava pelas ruas cinzas da grande cidade, sem endereço a chegar.
Um dia resolveu parar de andar. Estava cansado, com os pulmões doloridos pela pneumonia e os ossos quase quebrando de tão fracos. Sentou-se na grama da primeira praça que encontrou. Não sairia tão cedo dali. Cansou do cinza, agora queria o verde, o azul. Passou a fixar um olhar atônito para o céu, desde a hora em que o sol nascia até a hora em que se punha. Nem sempre o céu estava azul, muitas vezes estava tão cinza quanto as ruas por onde vagou. Passou a se sentir apenas uma cabeça, de tanta fraqueza que sentia o corpo. Sentia seu crânio como um balão que voa por aí, levado pelo vento.
Pensou na morte por alguns instantes. Não se incomodava com ela. Para ele, a morte era o fim da vida, e o que vivia, era ausência de vida. Então a vida é que era incômoda. Pensou nos amores que teve. Amou e muito. Amou tanto o mundo e a existência da humanidade que não conseguiu se fixar a um objetivo único. Tudo para ele foi válido, até a dor e o sofrimento. Trocou uma vida cômoda porém insatisfeita pelas ruas da cidade. Não aceitava ser um nome só ou um número no documento. Apenas quis ver tudo e não ser nada.
Ser o eu em terceira pessoa.
Atordoado, toda vez que olhava para o céu, limpo ou nublado, via uma bola vermelha. Mas não era qualquer bola vermelha, era aquela que só ele poderia ver. Seria um sinal de Deus? Toda vez que via a tal bola vermelha tinha uma vontade imensa de sorrir, com os poucos dentes que lhe restavam na boca. E sorria... sorria como uma criança. Sorria pois aquela bola vermelha lhe trazia tantas lembranças boas da infância, as mais puras que existiram. A bola vermelha lembrava um abraço quente de fraternidade. Lembrava o catar conchinhas na beira do mar. Cantigas de roda. Beijo molhado. Cheiro da terra depois da chuva. As capuchinhas do quintal de casa. Canto de sabiá.
Sentiu-se ridículo. Era ridículo. Tudo foi e sempre é ridículo. Sorriu por não ser nada mas ser ridículo e... pronto! Por um segundo ser ridículo fez todo o sentido para aquela existência que ele tanto anulava. Não sentia mais o corpo, mas enquanto os pensamentos ainda lhe viessem à cabeça, sentia-se vivo. Há muito não se sentia tão feliz.
A bola vermelha despertou a felicidade contida. Aquela felicidade como que guardada no fundo de um baú ou num álbum de fotografias.
E sorria o tempo todo, olhando para o céu.
"Deus é um palhaço", pensou.
E cerrou os olhos, para todo o sempre.
2 comentários:
Salve salve Calu querida!
Muito lindo o texto...retrata muito mais nas entrelinhas que no próprio texto...quase uma oração para abrir nossos próprios olhos de zumbis (que acreditamos estarem abertos).
Me diga de quem é esse texto, e vou tomar a liberdade de colocá-lo em meu space, ok?
Beijos querida e continue relatando o mundo.
Carinho
Armando
Meu, você é foda! Estou emocionada com esse texto.
Senti vontade de mandar pra um monte de gente, gente que também quer sorrir, gente que precisa de um pouco de ridículo pra ser mais feliz. Ninguém sabe a receita da felicidade ou é conhecedor da verdade, mas aos poucos a gente caminha, erra, faz micagem, fala sério, chora e ri muuuuuuuuuuuuuito pra descobrir que os verdadeiros valores se encontram nas pequenas coisas e os verdadeiros amigos mais perto do que imaginamos.
Outra coisa... eu coloquei esse barato como anônimo porque eu não faço a mínima idéia de como fazer essas paradas, mas queria deixar meu comentário... he he he. Um dia eu aprendo.(RS)
Beijo enorme no seu coração.
Déia
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