Se todo mundo pensasse seriamente no absurdo que é tudo isso de ser feito de carne, mas também olhar as estrelas, de ter um rosto, mas também ter aquele buraco fétido, se todo mundo tivesse o hábito de pensar, haveria mais piedade, mais solidariedade, mais compaixão e amor. Hilda Hilst
28 outubro, 2008
a menina que queria comer nuvens
Eu gosto de brincar sozinha no meu quarto. Às vezes a dinda entra aqui, pergunta se vou almoçar. Eu não sinto muita fome. Eu nunca sinto fome. Eu cozinho pras minhas bonecas e elas sim, gostam de comer. Eu não gosto de comer, sabe. Não assim, de verdade verdadeira. Comida de mentirinha é mais gostosa. Comida de brincadeira. Minha mãe fica preocupada, ralha comigo toda hora. Mas, ah, eu não ligo pra isso. Eu não ralho com as minhas bonecas quando elas não querem comer a minha comidinha. Minha mãe não entende. Eu só quero comer nuvens. Elas são tão branquinhas e fofinhas! Cada hora é uma coisa. Nuvem de coelhinho. Nuvem de bolinho. Aí sim eu sinto fome. Eu vou lá pro quintal. Minha mãe ralha porque eu me sujo toda deitada na grama. Mas eu não ligo. Eu gosto do cheirinho da grama. E dos tatus-bola do jardim. Eu fico com fome das minhas nuvenzinhas lá do céu. O céu azulzinho, azulzinho, que nem o mar. Se bem que eu nunca vi o mar, assim, não de verdade. Só vi na fotografia. Mas eu não ligo. Eu tenho esse mar maior em cima de mim, e as minhas nuvens. É só delas que eu gosto. Minha mãe chora toda vez que eu digo que vou subir lá no céu pra comer as nuvens. Sei lá por quê. Ela fala que eu tenho que comer. Mas eu não sinto muita fome, ela sabe. Eu nunca sinto fome. Eu não gosto quando a mamãe chora, eu fico triste. Eu falo pra ela não chorar, porque o céu é bonito que nem o mar. Eu sei que a mamãe se preocupa comigo, mais ainda depois que eu não pude mais ir pra escola. Mas eu não ligo de não ir mais pra escola. Eu gosto do meu quarto. Eu gosto de deitar na grama do quintal. Eu gosto de todos os tatus-bola. Às vezes vem umas borboletas me visitar! Eu também gosto muito delas. Eu falo pra mamãe não chorar, eu falo pra ela vir deitar comigo pra ver o mar-céu. Eu queria que a mamãe também tivesse fome de comer nuvens, acho que aí ela ia ficar feliz. É sim, porque eu sempre fico feliz quando tenho vontade de comer as nuvens. Ah, mas ela só fica preocupada. E fica triste. Não sei por que mamãe anda tão triste. A gente não pode ficar triste assim, né, se a gente tem tatu-bola, e tem borboletas nos visitando! A gente tem as nuvenzinhas. Eu falo pra ela mas não adianta. Eu gosto do meu quarto. Eu peço pra mamãe abrir a janela. Eu não posso mais deitar na grama, mas eu não ligo. Eu posso ver o mar-céu da minha janela. As minhas nuvens! Elas estão me esperando. Eu vi lá fora as borboletas nos visitando. Eu gosto muito delas. Eu estou com fome de comer as nuvenzinhas. Acho que eu vou até elas. A mamãe tá chorando. Mas eu tou feliz, pois agora vou sentir o gosto delas.
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2 comentários:
Adorei sua intensidade :)
Adorei a história
Sidelia mulher inteligente e sensível
Só poderia escrever algo assim
Amiga Sidelia Parabéns
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