Ainda me lembro, como se fosse hoje, da visita de um poeta cego aos estúdios da TV Cultura, quando eu ainda trabalhava no programa Provocações, de Antônio Abujamra. Fui eu quem recebi essa figura careca, de óculos escuros e bengala, antes da gravação do programa. Conversamos pouco, amenidades até então, eu estagiária e ele poeta cego, mas simpático e ilustre em sua maneira de ser. Ainda me lembro, como se fosse hoje, dessa presença que tanto me marcou. Seu nome verdadeiro é Pedro, mas todos o conhecem (os que conhecem) por Glauco Mattoso. E ele mesmo explicou, à rede pública de televisão, o por quê desse nome artístico: um trocadilho com "glaucoma", a doença que lhe deixou cego depois de adulto.
Ainda me lembro, como se fosse hoje, das palavras que marcaram esse momento "meu pesadelo é acordar. Porque quando eu estou dormindo, eu sonho com cores, com imagens, com paisagens, mas quando eu acordo é que vem o pesadelo de abrir os olhos e não enxergar absolutamente nada".
Na suas palavras finais da entrevista, expõe com raiva a ausência de tratamentos eficazes para esse e outros tipos de problemas de visão.
Dizem que só sentimos falta do que tivemos, então imagine como foi para este homem viver enxergando até os 44 anos de idade e depois ficar completamente cego. Imagine como foi para este homem ficar cego quando até então era também um poeta concretista, dentre outras coisas.
Lembre-se dos momentos finais da vida de João Cabral de Melo Neto, que anunciou que pararia de escrever quando soube da doença que o deixaria cego. Parou de viver.
Se você está lendo isso aqui, e agradeça por estar, você não tem noção. Eu não tenho noção, e espero nunca ter, porque deve ser muito doloroso.
Para isto, não existem eufemismos. Não dá pra suavizar. Não dá para ser suave quando se fica cego aos 44, como ele. Não há eufemismos para essa dor.
Hoje abri a maravilhosa revista Caros Amigos, edição de abril de 2005, uma peça rara da nossa mídia impressa, e ali estava um poema e um texto desse também maravilhoso e raro poeta Glauco Mattoso.
Boa leitura.
SONETO 911 BATISMAL
No manual de estilo está disposto
que Pequim é "Beijim" e estouro é "boom".
Bandido é "cidadão", bunda é "bumbum".
Prostituta é "modelo", cara é "rosto".
Mas que mania estúpida! Que gosto
de achar que flatulência ou peido é "pum",
que "alcóolico" é alcoólatra ou bebum,
como se trocar nome é trocar posto!
Pra mim, "beijim" é o beijo do mineiro,
"bumbum" é só bundinha de neném,
e puta é puta mesmo, bem rasteiro!
A mídia quer ditar o que convém;
porém, no linguajar do brasileiro,
não vem com viadagem, que não tem!
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A gente pode até achar que é muita cara-de-pau a do político, já quase no bico do corvo, que "namora" mulher muito mais nova, ou do astro pop viadíssimo que se "casa" com a vedete lindíssima, ou do craque feio que só a peste "saindo" ou "ficando" com alguma atriz famosa. Mas, pensando friamente, estão todos nas deles: compram o que seu dinheiro pode comprar. Não é culpa deles se as mulheres estão à venda. Pensando mais friamente ainda, nem é culpa das prostixuxas (mistura de puta com bruxa) se a cotação da carne está alta na bolsa de mercadorias. Afinal, elas só vendem o que têm pra vender, e têm que aproveitar enquanto é tempo. Bobeou, encalha. A conclusão acaba sendo a mesma de sempre: a culpa é da imprensa, que fica "badalando" e "repercutindo" esses contratos de curto prazo. E, pensando com o máximo de frieza, nem a imprensa é responsável pelo mascarado mercado nupcial das beldades e dos espantalhos endinheirados. A culpa é nossa, mesmo, que distraidamente engolimos essa mania de eufemizar que algúem tenha um "romance" ou esteja "namorando" com qualquer celebridade da vida. É como nas letras de pagode: ninguém declara que ama, só se fala em "paixão", mas o que se quer dizer mesmo é "tesão". Então, por que diabos não vão direto ao ponto e não admitem que só querem mesmo é foder? Já que é pra eufemizar, podiam ser mais objetivos. Em vez de cantar que "não posso segurar essa paixão", cantem logo que "preciso urgentemente introduzir meu membro viril na sua cavidade vaginal" ou coisa assim. Sem esquecer que o código do consumidor recomenda que a tabela de preços esteja exposta e bem visível. Quem sabe assim parávamos com essa frescura...
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Recomendo, por essas e outras, que você compre esse exemplar da Caros Amigos. Aliás, recomendo que você compre todos os exemplares. Além desse texto, leiam também a matéria do jornalista Emir Sader "Febens ou CEUs", que pretendo comentar logo mais, e a entrevista com a ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy. Fora o resto, que também é muito bom.
Por isso eu amo os ditos malditos! Eles sempre cutucam as feridas da verdade.
Um comentário:
Olá, Calu...
A Caros Amigos não é das minhas leituras prediletas (vc deve entender os motivos), mas o texto (e o soneto) do Glauco é maravilhoso! -- e bastante "conservador", na minha óptica de ver as coisas.
Aliás, um dos irracionais pavores que eu tenho, desde minha infância, é o medo de ficar cego. Quando era pequeno (coisa que ainda sou), me levantava de noite só pra conferir se eu estava ainda enxergando... Deus nos livre dessa! Tem tanta coisa boa pra gente ver...
Abraços!!!
(sem eufemismos!)
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