27 abril, 2007

Eu não sei escrever

Analogia escatológica: meu blog é uma bacia esmaltada. Nela descarrego a minha dor de barriga metafórica. Quando faço isso me sinto leve e livre.

Compreendam os senhores e as cenouras, quando cito o velho Quintana: "É preferível, para a alma humana, fazer maus versos a não fazer nenhum."

Eu faço os meus maus versos, minhas más linhas, meu mau blog, minha má escrita, meu mau humor, minha má fé no mundo, minha má digestão.

Eu não sei escrever.

Mas sei viver!

26 abril, 2007

Nota real

é possível amar um ser humano?
é claro, especialmente se você não os conhece muito bem. eu gosto de olhar para eles através da minha janela, caminhando na rua.
Stirkoff, você é um covarde?
é claro, senhor.
qual é a sua definição de covarde?
um homem que pensaria duas vezes antes de lutar com um leão com as mãos nuas.
e qual é a sua definição de homem corajoso?
um homem que não sabe o que é um leão.
qualquer homem sabe o que é um leão.
qualquer homem pensa que sabe.
e qual é a sua definição de um tolo?
um homem que não se dá conta que o Tempo, a Estrutura e a Carne em sua maior parte se desgastam.
então quem é que é sábio?
não existe nenhum sábio, senhor.
então não pode haver nenhum tolo. se não existe noite não pode existir dia; se não existe branco não pode existir preto.
sinto muito, senhor. eu pensava que tudo era o que era, não dependendo de qualquer outra coisa.
você andou metendo o seu pau em vasos de flores demais. será que você não compreende que TUDO está certo, que nada pode andar errado?
eu compreendo, senhor, que o que acontece, acontece.
o que é que você diria se eu tivesse que mandar decapitá-lo?
eu não seria capaz de dizer coisa alguma, senhor.
eu quis dizer que se eu mandasse decapitar você eu permaneceria a Vontade e você se transformaria em Nada.
eu me transformaria em outra coisa.
à minha ESCOLHA.
de acordo com ambas as nossas escolhas, senhor.
relaxe! relaxe! espiche as pernas!
muito gentil da sua parte, senhor.
não, muito gentil de ambas as partes.
naturalmente, senhor.
você diz que frequentemente sente essa loucura. o que é que você faz quando ela se apodera de você?
escrevo poesia.
a poesia é loucura?
não-poesia é loucura.
o que é loucura?
loucura é feiúra.
o que é feio?
para cada homem, uma coisa diferente.
a feiúra é conveniente?
ela está aí.
ela é conveniente?
eu não sei, senhor.
você aspira ao conhecimento. o que é conhecimento?
conhecer o mínimo possível.
como é que pode ser isso?
eu não sei, senhor.
você pode construir uma ponte?
não, senhor.
estas coisas são produtos do conhecimento.
estas coisas são pontes e armas.
eu vou mandar decapitá-lo.
obrigado, senhor.
por quê?
o senhor é minha motivação quando tenho muito pouca.
eu sou a Justiça.
talvez.
eu sou o Vencedor. eu vou fazer que você seja torturado, eu vou fazer você gritar. eu farei você desejar a Morte.
naturalmente, senhor.
será que você não se dá cota que eu sou o seu senhor?
o senhor é o meu manipulador; mas não há nada que o senhor possa fazer a mim que não possa ser feito.
você pensa que fala inteligentemente, mas com os seus gritos você não dirá nada inteligente.
eu duvido, senhor.
por falar nisso, como é que você pode escutar Vaughn Williams e Darius Mihaud? nunca ouviu falar nos Beatles?
oh, senhor, todo mundo já ouviu falar dos Beatles.
você não gosta deles?
eu não desgosto deles.
você desgosta de algum cantor?
cantores não podem ser desgostados.
então, qualquer pessoa que tenta cantar?
Frank Sinatra.
por quê?
ele evoca uma sociedade doente para uma sociedade doente.
você lê algum jornal?
apenas um.
qual?
OPEN CITY.
GUARDA! LEVE ESTE HOMEM PARA AS CÂMARAS DE TORTURA IMEDIATAMENTE E DÊEM INÍCIO AOS PROCEDIMENTOS!
senhor, um último pedido.
sim.
posso levar meu vaso de flores comigo?
não, eu vou usar ele.
senhor?
quer dizer, eu vou confiscá-lo. agora, guarda, leve esse idiota daqui!
e, guarda, volte com, volte com...
sim, senhor?
uma meia dúzia de ovos crus e alguns quilos de alcatre moída...

saem o guarda e o prisioneiro. o rei inclina-se para a frente, sorri maliciosamente enquanto Vaughn Williams vai se insinuando pelo sistema de comunicação. lá fora, o mundo movimenta-se para a frente enquanto um cão infestado de pulgas mija num lindo limoeiro vibrando sob o sol.

Charles Bukowski in Notas de um Velho Safado

23 abril, 2007

Quando uma estrela nasceu

De bunda para a lua,
olhos de coruja,
nasceu a estrela outonal
(não atonal).
Regida pelo signo da arte
e da expressão.

Ela brilha porque ama,
porque sente,
porque sofre,
porque é gente,
porque é astro,
porque é tudo,
e uma coisa só.

Já tentaram apagá-la muitas vezes.
Até ela mesma já quis se apagar.
Mas ela é intensa.
Não deixa.
Mesmo que sofra,
mesmo que chore,
mesmo que sinta dores,
ela nunca se apaga.
Não se apaga porque vive.
Não se apaga porque é única,
original, um universo à parte,
e seu brilho é próprio.

Quem brilha sozinho só se apaga quando morre.

21 abril, 2007

Especial

Sexta-feira, aos 20 dias de abril do ano de 2007:
Gente bacana, gente especial.
Sorrisos e caretas.
Bebidas - alcóolicas ou não.
Comidinhas - com pimenta ou não.
Pimenta muito ardida.
Farinha.
O mais importante: toda a gente mais querida.

Agradeço a todos os presentes na comemoração do meu aniversário.

19 abril, 2007

Uma cultura para todos

No ano passado, o Theatro Municipal de São Paulo recebeu o Ballet de Moscou com 3 espetáculos diferentes: O Lago dos Cisnes, Dom Quixote e Romeu e Julieta. Quando soube que eles viriam para cá, fiquei eufórica. Definitivamente, eu não poderia perder uma das grandes cias. de dança clássica do mundo, algo tão tradicional, ainda mais vinda da Rússia, país riquíssimo culturalmente. Estabeleci uma corrida atrás de ingresso, falei com um, falei com outro, até que um amigo, também produtor, através de seus contatos, arrumou dois ingressos para assistirmos o Dom Quixote. Eu estava empolgadíssima.
Chegamos um pouco mais cedo e ficamos sentados na escadaria do Theatro, esperando a pessoa que viria com os ingressos. Desde ali de fora, fui observando o público: grandes carros importados paravam, e deles desciam grandes peruas, de laquê nos cabelos, super maquiladas, com seus digníssimos maridos de terno e gravata, ou black-tie, sapato lustroso, carregando a tira-colo os filhos adolescentes, vestidos como velhos. Ainda comentei com meu amigo: baile de gala? ou festa de casamento? E ríamos, ríamos tanto, com nossas calças jeans e nossos simplérrimos par de tênis. "O pior é que é esse o tipo de público que vem assistir o ballet clássico tradicional"- disse meu amigo com ar sério - "é muito parecido com o público que frequenta a Sala São Paulo". Até aí, tudo bem. Se as pessoas acham chique usar roupa de gala para ir ao teatro, tudo bem. Na minha visão, isso é algo ultrapassado, elitista e conservador e, dependendo da ocasião, pode beirar ao cafona. Foi-se o tempo em que esse tipo de manifestação artística era fechada para a aristocracia.
Ou não?

O espetáculo foi ruim, fraco, uma bailarina caiu no mesmo lugar 3 vezes, e o segundo ato foi quase uma hora de rodopios incessantes dos solistas da cia. Mas o pior nem foi isso. A cada peripécia no palco, uma arrancada de aplausos na platéia. Ou seja, a cada gesto, a cada respirada, alguém puxava um aplauso e o resto da platéia acompanhava. Até a bailarina que escorregou foi aplaudida. A impressão que tivemos é que essas pessoas ficam tanto tempo sem assistir a um espetáculo, que quando vêem um, mesmo que ruim, ficam histéricos. Estragaram toda e qualquer pausa dramática proposta. Fiquei profundamente irritada. Meu amigo também.
Saímos xingando do teatro, principalmente a platéia. De que adianta se vestir daquele jeito e ter um comportamento quase que de torcida de futebol? Nós e nossas modestas calças jeans, conseguimos absorver muito mais do espetáculo do que essa gente afobada e exagerada.
Na nossa conversa, falei sobre como me senti decepcionada, até porque criei muita expectativa em cima do Ballet de Moscou. Comentei sobre um espetáculo de dança-teatro, que havia assistido pouco tempo antes, "La Chambre D´Isabella", da Need Company (Bélgica), e sobre um outro da cia da Martha Grahamm, em 2005. Dois espetáculos mais maravilhosos que já vi nesses meus poucos 26 anos de idade.

Voltando ao assunto da aristocracia, pensando melhor, existe sim uma cultura para as elites. Nem eu que trabalho na área cultural, não tinha dinheiro para comprar um ingresso para o Ballet de Moscou (aliás, pouca gente que vive de arte nesse país ganha muita grana). E me recuso a pagar um preço exorbitante na Sala São Paulo. Me recuso, mesmo. Prefiro pagar 10,00 para ver a Sinfônica Municipal, ou a Orquestra Experimental de Repertório lá no Theatro Municipal. Até porque acho muito absurdo o John Neschling embolsar mais de cem mil reais por mês. Entendam que não estou falando sobre sua competência enquanto maestro, ele fez um trabalho muito importante com a OSESP. Mas, no país que a gente vive, um maestro receber um salário absurdo como esse, pago ainda pelo Estado, é demais. Simplesmente não dá.

Isso tudo me arremeteu a uma outra lembrança: na época em que eu trabalhava na Rádio Cultura, se falava muito em popularizar o Theatro Municipal. Se não me engano, estávamos na era Pitta na prefeitura (tenho cólicas só de lembrar). E eu ouvi, da boca do diretor do Theatro, que tinha um programa lá na rádio, as horripilantes palavras: "Quero proibir o público de entrar de calça jeans e tênis no Theatro. Imagine só, as pessoas sentando de calça jeans nas minhas cadeiras de veludo!!".

Ah, seres humanos, cada vez mais malditos, maldosos e contraditórios!!
Ah, quantos ainda que confundem Poder com Foder!

18 abril, 2007

Então resolva não arrancar os outdoors...

Arrancadas as placas publicitárias, o que começa a surgir para a cidade é algo fantástico.
Problemas esquecidos, renegados, rancores, mágoas, negações, preconceitos, todos ocultados, abafados, na forma como cada fachada fosse revelada esquecida, escondida que é como dá para se perceber, tocamos um pouco de nossas vidas individuais nesta coletividade chamada Brasil. Que o brasileiro em particular nunca foi chegado a encarar porcaria alguma é uma pequena constatação, questionável talvez, mas as fachadas escondidas podem significar a síntese de algo bem tacanho em nós, que fazemos questão de esconder mesmo presente em nossas caras todos os dias nos vagões e conduções, carros e aviões.
Esta mescla bem rústica de positividade, positivismo radical (que parece que nunca mesmo foi largada da bandeira), pregações religiosas invertidas, nacos de orientalismo conveniente, um pouco disso, um pedaço daquilo, no ex-país do futebol, e agora o futuro país da cana-de-açucar, parecem que sempre foram parte de nossas melhores e hoje, bem piores características do sincretismo que inventou estas terras cá.
Ou como dizia um ótimo colunista, faça como Manoel Carlos: se não der para resolver, meta um espírito na história. Essa coisa asquerosa de que não se deve olhar para o passado, como se o presente fosse uma forma cortada e totalmente desvinculada disso.
E quando não se dá para cobrir, se tenta chamar ou desviar a atenção do problema com uma placa maior, mais linda e colorida. Eu disse problema? Me desculpem, eu tenho que ser positivo, estamos falando das “questões”.
De qualquer forma ficamos com a “questão” que a Espanha teve que se deparar nos anos pós-franquismo: ficamos e discutimos a relação? Ou esquecemos, mesmo que momentaneamente, e partimos para o caminho reto do futuro que nos aguarda? Optaram pela segunda; mas agora volta por lá um revisionismo da era franquista que ficou inevitável.
Enfim, em algum momento vamos ter que encarar ... ou então resolva não arrancar os outdoors...

André Bianchi

Roteiro do Silêncio

Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.
Nas prisões e nos conventos
Nas igrejas e na noite
Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.

Os amantes no quarto.
Os ratos no muro.
A menina
Nos longos corredores do colégio.
Todos os cães perdidos
Pelos quais tenho sofrido
Quero que saibam:
O meu silêncio é maior
Que toda solidão
E que todo silêncio.

Hilda Hilst. 1959.

17 abril, 2007

O Mundo Maravilhoso de Mário Quintana

Em homenagem ao maravilhoso escritor e poeta Mário Quintana, ofereço aos raros leitores deste modesto blog, alguns fragmentos do livro "Na Volta da Esquina" (RBS/Ed. Globo, 1979).

a amiga

Ele chegou ao bar, pálido e trêmulo. Sentou-se.
- Por enquanto, nada - desculpou-se ao garçon. - Estou esperando uma amiga.
Dali a dois minutos, estava morto.
Quanto ao garçon que o atendeu, esse adorava repetir a história, mas sempre acrescentava ingenuamente:
- E até hoje, a "grande amiga" não chegou!


fim

E chegará um tempo em que os militares inventarão um projétil tão perfeito, mas tão perfeito mesmo, que dará volta ao mundo e os pegará por trás.


fatalidade

O que mais enfurece o vento são esses poetas inveterados que o fazem rimar com lamento.

placas

Ah, meu pobre Coronel Emerenciano, quem sois vós? Quem sois vós, Dona Maurília, Fernando Ivo? Altamirando Barbosa da Silva? Quem sois vós, com todos esses inúteis cartões de visita deixados teimosamente em cada esquina? Que vergonha, velhinhos... Essa coisa de a gente virar rua é uma forma pública de anonimato.

"a poesia é necessária"

Título de uma antiga seção do velho Braga na Manchete. Pois eu vou mais longe ainda do que ele. Eu acho que todos deveriam fazer versos. Ainda que saiam maus, não tem importância. É preferível, para a alma humana, fazer maus versos a não fazer nenhum. O exercício da arte poética representaria, no caso, como que um esforço de auto-superação.
É fato consabido que esse refinamento do estilo acaba necessariamente o refinamento da alma.
Sim, todos devem fazer versos. Contanto que não venham mostrar-me.

poeminho do contra

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!

imagem

Haverá ainda, no mundo, coisas tão simples e tão puras como a água bebida na concha das mãos?

um epitáfio para catulo da paixão cearense

Catulo não morreu: luarizou-se...

da preguiça

A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda.

destino atroz

Um poeta sofre três vezes: primeiro quando ele os sente, depois quando os escreve e, por último, quando declamam seus versos.

imaginação

A imaginação é a memória que enlouqueceu.

leitura

Essa mania de ler sobre autores fez com que, no último centenário de Shakespeare, se travasse entre uma professorinha do interior e este escriba o seguinte diálogo:
- Que devo ler para conhecer Shakespeare?
- Shakespeare.

sinônimos

Confesso que até hoje só conheci dois sinônimos perfeitos: "nunca" e "sempre".

e daí?

Falam muito no Sono Eterno. Sempre falaram, aliás... E daí?
Daí, só uma coisa me impressiona, e muito: a ameaça de uma Insônia Eterna.

precaução

As damas gordas não devem usar vestidos estampados, para não se repetir o que aconteceu certa vez, quando um senhor sentou no colo de uma delas, pensando que fosse uma poltrona.

sangue e areia

O mais revoltante nas touradas é que os touros não são aplaudidos quando saem vencedores.

o tempo

O tempo é um ponto de vista dos relógios.

epígrafe

As únicas coisas eternas são as nuvens...

a companheira

A lua parte com quem partiu e fica com quem ficou. E, pacientemente, aguarda os suicidas no fundo do poço.

ao pé da letra

Enforcar-se é levar muito a sério o nó na garganta.

interpretações

Mas para que interpretarem um poema? Um poema já é uma interpretação.

incomodidade

O ruim dos filmes de Far West é que os tiroteios acordam a gente no melhor do sono.

a esfinge

Na volta da esquina encontrei a Esfinge. Petrifiquei-me. Ela me disse então, olhando-me nos olhos:
- Devora-me ou decifro-te!

biografia

Era um grande nome - ora que dúvida! Uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou rua... E continuaram a pisar em cima dele.

08 abril, 2007

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos